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Rio Vermelho parte da sua história

Ruínas de maternidade no Rio Vermelho recontam parte da história e de figuras ilustres do bairro mais boêmio de Salvador

Abrigo dos boêmios, o bairro do Rio Vermelho tem em cada rua parte da história de Salvador. Com relíquias escondidas em muros, prédios e casas, as ruínas em um terreno que já sediou hospital e maternidade revelam parte dessa riqueza histórica. Mais de 30 anos após a desativação do local na década de 80, a área de mais de 19 mil metros quadrados já foi alvo de polêmica com moradores da região e continua sem destino definido.

Vigiada por apenas um segurança, o espaço foi, segundo o historiador e escritor Ubaldo Marques, a maternidade pública mais importante do estado da Bahia, assim como o Hospital da Criança, que era referência. “A maternidade era uma construção monumental, com fachada principal e escadarias de acesso voltadas para a Rua Marquês de Monte Santo e entrada para ambulância e outros veículos por uma passagem lateral, vizinha à Rua do Barro Vermelho”, diz o trecho do livro “Rio Vermelho”, de Ubaldo Marques, publicado em 1991.

Hoje, o que restou do complexo de saúde, inaugurado em 25 de dezembro de 1936, foi apenas a escadaria da conhecida Maternidade Nita Costa, construída apenas em 1952. “Ali era uma propriedade particular, de Adolfo Moreira, que era morador do bairro e foi o maior benemérito que o Rio Vermelho teve. Ele desmembrou uma parte da antiga fazenda dele para a construção do Hospital da Criança”, conta Ubaldo Marques.

De acordo com o historiador, o terreno foi doado com a garantia de que o espaço servisse para a finalidade de instituição pública de saúde. Ele diz que no documento de doação tinha uma cláusula garantindo que, no dia que o local deixasse de cumprir com as finalidades beneficentes, o bem doado, assim como todos os benefícios, voltaria para o poder do doador e os respectivos herdeiros.

O responsável pela construção do Hospital da Criança, que foi referência em pediatria no estado, foi o médico Alfredo Magalhães, também morador do Rio Vermelho, que conseguiu viabilizar o espaço por meio de campanhas. Ele era presidente do Instituto de Proteção e Assistência à Infância da Bahia (IPAI-BA), instituição filantrópica fundada em 11 de junho de 1903, por ele e também pelo médico Joaquim Augusto Tanajura. O IPAI-BA tinha como objetivo a proteção materno-infantil.

“Era um hospital tradicional e era referência na área da pediatria. Alfredo era conhecido a nível nacional. Ele tinha uma casa belíssima, que é onde fica atualmente o restaurante Fogo de Chão, próximo ao Largo da Mariquita”, conta o pesquisador e arquiteto italiano Federico Calabrese, autor da tese de mestrado “Estudos de Requalificação e de Valorização Urbana e Paisagística do Rio Vermelho em Salvador”.

Em 1930, a convite de Alfredo Magalhães, Leonina Nita Barbosa Sousa Costa, conhecida como Nita Costa, torna-se vice-presidente do IPAI-BA. Em 1943, após a morte de Magalhães, ela ocupa a presidência, quando o Hospital da Criança passou a levar o nome do médico. Já em 1952 é construída a ala da Maternidade Nita Costa, no período do governo de Luís Régis Pacheco (entre 1951 e 1955), que viria a se tornar a melhor do estado.

Natural de Feira de Santana, Nita Costa prosseguiu com o trabalho de Alfredo Magalhães e pelo importante papel na questão assistencialista e política, a maternidade levou o nome dela. Nita Costa foi uma das fundadoras do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) na Bahia e a primeira deputada federal do nordeste do país, em 1955, quando a bancada feminina possuía apenas duas cadeiras, segundo registros do centro de pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Seguindo pelo terreno que fica no Morro do Menino Jesus, um pouco da história do bairro descoberto antes mesmo de Salvador, em 1509, por Diogo Álvares Corrêa, o Caramuru, vai se revelando. Ao fundo, tem a praia do Buracão, uma das mais badaladas de Salvador, e à frente um posto de gasolina, que já foi uma fábrica de papel.

As ruínas da maternidade Nita Costa ainda abriga muitas histórias dos personagens que por lá passaram. Segundo o historiador Ubaldo Marques, foi lá na instituição pública onde nasceu uma moradora ilustre do bairro, Lindinalva de Assis, mais conhecida como ‘Dinha do Acarajé’.

Muito frequentado por músicos, boêmios, turistas e baianos, o Largo de Santana, que fica no Rio Vermelho, até hoje é conhecido popularmente como Largo de ‘Dinha’, tamanha a fama da baiana de acarajé que morreu aos 56 anos, em 2008.

O historiador Ubaldo Marques conta que o hospital e maternidade foram fechados por questões políticas, a partir do surgimento de outra maternidade, já no governo que sucedeu o de Régis Pacheco. “Foi construída a Tysila Balbino, no governo de Antônio Balbino. O governador queria que a ‘dele’ fosse a melhor da Bahia e mandou trancar todos os recursos da maternidade Nita Costa. E aí ela fechou. Foi um ato criminoso. Depois veio o governador Juracy Magalhães e não reativou. A construção monumental entrou em processo de ruínas”, conta o historiador.

O fechamento ocorreu em junho de 1959. Apesar disso, uma pequena ala do complexo de saúde continuou a funcionar como casa de órfãos até 1983, o que manteve o terreno a serviço da comunidade. Porém, com o fechamento total dos espaços do terreno, ele deveria ter voltado ao poder da família dos donos, mas segundo Ubaldo Marques, a área passou a ser do governo do estado.

“Não se sabe em qual governador, mas o terreno passou a ser do IAPSEB (Instituto de Assistência e Previdência dos Servidores do Estado da Bahia), de forma ilegal. Na época de funcionamento dessa instituição de órfãos, já eram ruínas as unidades do terreno. Depois, o governador Valdir Pires quis fazer um centro integrado do menor lá no espaço. O projeto foi até feito por Oscar Niemeyer. Aí, quando passaram o trator e quebraram a obrigação prevista na doação [de ser um espaço filantrópico], um empresário comprou o terreno da família de Adolfo Moreira e entrou na Justiça contra o Estado”, conta Ubaldo Marques.

De acordo com o historiador, o empresário, que ele não divulgou de quem seria, não tinha interesse em fazer um empreendimento e vendeu para exploração imobiliária. “Dizem que ali se tornaria um condomínio de luxo”, conta Marques.

Lauro Matta, presidente da Associação dos Moradores e Amigos do Rio Vermelho (AMARV), conta que há mais de dois anos foi chamado para uma reunião com a construtora Odebrecht e a Associação dos Moradores da rua Barro Vermelho, onde fica o terreno, para falar sobre os planos da empreiteira à época.

“A princípio, seria uma torre com 20 andares, uma por andar, e no mesmo terreno, um hotel seis estrelas, e seria o mais luxuoso e melhor do nordeste. Mas os moradores da rua Barro Vermelho chegaram até a sugerir que eles construíssem uma praça”, lembra o presidente.

O historiador Ubaldo Marques desaprova a possibilidade de que o local se transformasse dessa forma. “Chega de grandes prédios no Rio Vermelho. É um bairro histórico, não tem um centro cultural aberto para o público, em uma localização privilegiada. Aquela escadaria poderia ser preservada, é lindíssima”, diz Marques.

G1 tentou contato com a Associação dos Moradores da rua Barro Vermelho, que também seria contrária à construção de um empreendimento imobiliário no local, mas até a publicação desta reportagem, não obteve retorno. A reportagem também não conseguiu acesso ao espaço interno do terreno.

De acordo com a empresa de segurança que atualmente toma conta da área, que é cercada por muro e tem a lateral fechada com placas de alumínio, a Odebrecht vendeu o terreno para a BV Financeira, que é do grupo Votorantim, mas a reportagem não conseguiu contato com os atuais donos do espaço. A Odebrecht também foi procurada pela reportagem e ficou de se posicionar sobre o terreno.

O pesquisador e arquiteto Federico Calabrese aposta em uma restauração do espaço e preservação da memória do bairro.

“O Rio Vermelho é uma área de proteção paisagística natural pelo município, pela Lous [Lei de Ordenamento e Uso do Solo]. Depois, tem alguns prédios tombados, pelo Ipac e Iphan, como a igreja de Santana, a Casa de Jorge Amado, a casa onde tem a academia Vila Forma, algumas edificações tombadas, mas o resto não tem nenhum tipo de proteção. Tem o resto de uma fábrica de papel, que [os atuais donos] preservaram aquela chaminé. O Rio Vermelho tem vários elementos que são patrimônios antigos. Um bairro a ser estudado. Um bairro que tem vida na cidade”, declara Calabrese.

Segundo ele, não há nenhum tipo de proteção para o espaço onde foi o Hospital da Criança e Maternidade Nita Costa. “A escadaria é muito monumental, porque o hospital estava lá em cima. Era escadaria de acesso ao hospital. Eu trabalho na UFBA, sou professor, sou envolvido com patrimônio. Aqui [em Salvador] é muito difícil. Lá [no terreno] não tem quase nada. Nem sei por que eles não demoliram essa escadaria”, ironiza.

“O Estado tinha que aproveitar para fins de utilidade pública. Deveria desapropriar e construir um centro cultural ali. O Rio Vermelho não tem. É um bairro artístico e histórico. Chega de trazer prédios para o bairro. Ninguém aguenta mais. Jogar mais um equipamento imobiliário ali é crime”, sugere Ubaldo Marques, que também é morador da região desde os 13 anos, quando o local era apenas de veraneio. Enquanto o sonho do historiador não se concretiza, as ruínas seguem sem futuro definido no lugar mais chamoso da cidade, onde a noite nunca termina.

 (G1)

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