Hanseníase: a doença antiga que a ciência não consegue eliminar
Um dos únicos vetores conhecidos da bactéria Mycobacterium leprae – o bacilo de Hansen, que causa a hanseníase – na natureza é um mamífero que mais parece um rato grande com um longo focinho, vestido em uma armadura de couro: o tatu-galinha.
Nativo da América do Sul, este animal se alimenta de insetos e agora também pode ser encontrado em toda a América Central e no sul da América do Norte.
O Brasil, a Índia e a Indonésia representam a maior parte dos 200 mil novos casos de hanseníase verificados todos os anos. E, no Brasil, os tatus são caçados para comer.
Pesquisadores concluíram em um estudo que 62% dos tatus mortos por caçadores estavam infectados com M. leprae. E pesquisas similares nos Estados Unidos – onde 150-250 novos casos em seres humanos são relatados todos os anos – concluíram que 20% dos animais daquele país são portadores da bactéria.
Mas a culpa pode não ser do tatu. Acredita-se que os seres humanos possam ter transmitido originalmente a doença para esses animais, quando os europeus a trouxeram para o Brasil, cerca de 500 anos atrás.
Cientistas também encontraram recentemente a bactéria em esquilos-vermelhos no Reino Unido. Mas, apesar das extensas pesquisas, nenhum outro portador animal foi encontrado até agora.
Houve até sugestões de que os esquilos-vermelhos poderiam ter sido responsáveis por espalhar a doença na Europa medieval. Mas podem existir outros abrigos naturais para a bactéria, que já foi descoberta sobrevivendo até no solo, segundo amostras analisadas no Reino Unido, Índia e Bangladesh.
A hanseníase é uma doença infecciosa crônica, que ataca a pele, os nervos e as membranas mucosas. Ela gera manchas brancas no corpo, dormência, fraqueza muscular e paralisia.
Mas, apesar das suas consequências devastadoras e do registro de casos possivelmente desde o ano 1400 a.C., essa doença antiga permanece até hoje, em grande parte, um mistério.
Ninguém sabe com surgiu a hanseníase, nem por que algumas partes do mundo são mais afetadas do que outras. Os cientistas também não sabem ao certo como ela é transmitida – e ainda não existe uma forma fácil de diagnosticar uma pessoa.
Por que a hanseníase é um problema tão difícil de resolver? E o que podemos fazer a respeito?
Perda de pacientes
“É uma doença muito complexa e, em grande parte, a hanseníase segue sendo um quebra-cabeça intrigante, até hoje”, afirma Gangadhar Sunkara, cientista especializado em desenvolvimento de drogas e chefe do programa global da companhia farmacêutica Novartis.
Apesar dos avanços significativos para conter a doença, até três milhões de pessoas em todo o mundo ainda vivem com hanseníase e, em média, 200 mil novos casos são diagnosticados todos os anos, segundo as estatísticas da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Mas, em 2020, esse número caiu para 128 mil casos, segundo Cairns Smith, professor emérito de saúde pública da Universidade de Aberdeen, no Reino Unido, e ex-diretor da organização Leprosy Mission.
Ao longo de dois anos, cerca de 140 mil casos deixaram de ser detectados, segundo os dados da OMS. Acredita-se que esta omissão tenha sido causada, em grande parte, pelas dificuldades impostas pela pandemia de covid-19 aos sistemas de saúde de todo o mundo.
“Eles não foram diagnosticados, nem tratados, e estão em sério risco de desenvolver incapacidades”, afirma Smith.
São particularmente preocupantes os números de crianças que não foram diagnosticadas devido às dificuldades impostas pela pandemia. Pelo menos 15 mil dos novos casos detectados anualmente em todo o mundo são de crianças.
Ser infectado com a doença na infância significaria evitar incapacidades duradouras. “Mas esses números [de crianças que recebem diagnóstico] caíram para 8 mil a 9 mil casos”, segundo Smith. “Isso significa que existem muitas crianças que estão em risco de desenvolver a doença.”
“Alguns países estão mostrando recuperação, mas ainda existe baixa detecção de casos em países como Mianmar, Sri Lanka e Filipinas”, prossegue ele. “Atualmente, estamos realmente enfrentando um desafio urgente.”
O mundo fez grandes avanços no tratamento da hanseníase nas últimas quatro décadas, especialmente com a introdução da terapia com múltiplas drogas pela OMS, para tratar a hanseníase multibacilar em 1982. A hanseníase multibacilar é uma forma mais avançada da doença, frequentemente caracterizada por lesões da pele e incapacidade.
Um tratamento novo é a terapia com múltiplas drogas, uma combinação de três comprimidos. Dois deles são administrados uma vez por mês e o outro, diariamente.
Este tratamento apresenta impactos enormes em termos de suspensão do avanço da doença. É o mais próximo que já conseguimos chegar da cura e evita o surgimento de incapacidades entre as pessoas afetadas.
Mas a terapia não conseguiu impedir o surgimento de novos casos, segundo explica Venkata Pemmaraju, líder de equipe em exercício do Programa Global sobre Hanseníase da OMS, que trabalha com questões relacionadas à hanseníase há quatro décadas.
Velhos desafios
O que faz com que essa doença antiga seja tão persistente? Segundo Sunkara, diversos fatores estão envolvidos.
Em primeiro lugar, o bacilo de Hansen reproduz-se com extrema lentidão. Por isso, uma pessoa infectada pode levar dois a 20 anos para exibir qualquer sintoma da doença.
O tempo médio de incubação da doença (ou seja, o período entre a exposição à bactéria e o surgimento dos primeiros sintomas) é de cinco anos e, em casos raros, um paciente pode passar duas décadas sem apresentar sintomas.
“Esta bactéria tem um tempo de incubação mais longo”, afirma Sunkara. “Leva cerca de 14 dias para que uma bactéria se divida em duas no corpo, em comparação com outras bactérias causadoras de doenças que podem dobrar de quantidade em minutos.”
Comparativamente, em condições ideais, a bactéria intestinal comum Escherichia coli, que tem algumas linhagens que podem causar envenenamento alimentar, pode dividir-se uma vez a cada 20 minutos.
O longo tempo de incubação é problemático não só para o paciente, mas também para os que estão à sua volta. Durante esse período, um paciente que não sabe que foi infectado pode transmitir a infecção para os demais, especialmente para seus contatos próximos, como membros da família.
Após o estabelecimento e o desenvolvimento da infecção na forma multibacilar, o tratamento da hanseníase pode levar até dois anos, mesmo com uma combinação de antibióticos.
A resistência aos antibióticos é outra questão importante. O tratamento original da hanseníase era o antibiótico dapsona, que se descobriu ser eficaz contra a bactéria nos anos 1940. Antes dele, a doença era incurável.
Mas, nos anos 1960, a droga já estava perdendo a eficácia. Atualmente, existem diversas opções mais eficientes, particularmente o antibiótico rifampicina.
A abordagem moderna de uso de diversos antibióticos em conjunto foi criada, em parte, para evitar o novo desenvolvimento de resistência, mas esta preocupação permanece presente.
Com diagnóstico e tratamento precoce, a hanseníase é eliminada com muito mais facilidade. Mas, infelizmente, diagnosticar a hanseníase é extremamente difícil.
O método padrão atual é fazer uma biópsia. Nesta técnica, é feita uma incisão minúscula em uma lesão da pele, através da qual o sangue é espremido. A polpa e o fluido do tecido são então coletados para exame no microscópio.
Mas este método é caro e trabalhoso, pois exige um laboratório e conhecimento técnico. Ele é particularmente difícil em áreas rurais, onde nem sempre são disponíveis instalações de laboratório, e em países de baixa renda, onde a hanseníase é comum e os recursos são escassos.
“Como resultado, muitos pacientes são diagnosticados com curso adiantado da doença, quando já ocorreram lesões da pele e dos nervos”, afirma Sunkara.
Esta questão é agravada pelo fato de que os cientistas ainda não sabem exatamente como a hanseníase é transmitida. É surpreendentemente difícil ser infectado e, muitas vezes, são necessários vários meses de contato próximo com uma pessoa infectada.
O consenso atual é que, provavelmente, ela é transmitida por gotículas no ar quando alguém tosse ou espirra, mas pode haver outros caminhos, como a pele.
Por isso, em vez de passar pelo trabalhoso processo de diagnóstico, uma opção é tratar imediatamente as pessoas que possam ter sido expostas.
“Para evitar a difusão da hanseníase, em 2018, a OMS introduziu uma intervenção significativa: os contatos próximos dos pacientes com hanseníase foram rastreados e receberam uma dose única de rifampicina”, explica Pemmaraju.
Concluiu-se que a intervenção tem efeito protetor de cerca de 55-60%. Mas a pandemia interrompeu o diagnóstico, levando à perda de 140 mil casos em todo o mundo, o que traria consequências para a difusão da hanseníase.
“Considerando que cada paciente com hanseníase tenha 10 contatos, são mais de 1,5 milhão de pessoas que estão em risco de desenvolver hanseníase porque não conseguiram tomar a dose única de rifampicina”, afirma Smith.
O tratamento com rifampicina teve impacto significativo em países como Gana, segundo Benedict Quao, chefe do Programa Nacional de Controle da Hanseníase de Gana, que é membro da Parceria Global para a Erradicação da Hanseníase.
“Pela primeira vez, os países receberam orientações médicas para poder forçar a liderança política a agir”, afirma ele.
A pandemia de covid-19, em grande parte, é responsável pela interrupção deste novo programa. Mas ela também introduziu uma ferramenta útil: o rastreamento de contatos.
Este método tem sido útil para identificar os contatos dos pacientes com hanseníase em muitas regiões, fazendo com que eles recebam uma dose do antibiótico preventivo. O problema é que alguns países talvez não consigam mobilizar recursos suficientes para o fornecimento regular de rifampicina aos contatos dos pacientes com hanseníase, segundo Quao.
“Em Gana, nós tivemos essa experiência em seis das nossas 16 regiões e queremos ampliá-la”, afirma ele. “É uma boa época para termos essa intervenção, mas não é uma intervenção perfeita. Os países reconhecem isso.”
Se fosse disponível um exame de diagnóstico rápido e eficaz, que não fosse invasivo, muitos desses casos perdidos de hanseníase e os contatos próximos dos pacientes poderiam ser identificados, sem necessidade de prescrições de rifampicina para indivíduos potencialmente saudáveis. A boa notícia é que esses exames de diagnóstico estão atualmente sendo desenvolvidos, embora possam não ser disponíveis por algum tempo.
Para estudar a doença, sua progressão e o desenvolvimento de exames de diagnóstico, os cientistas frequentemente precisam injetar M. leprae em tatus, em uma técnica que foi tentada pela primeira vez em 1971.
“O fato de não podermos cultivar essa bactéria tão facilmente em ambientes de laboratório é outro fator que dificulta o progresso do desenvolvimento desses exames”, segundo Sunkara.
Novos horizontes
Em 2000, a Fundação Novartis firmou parceria com a OMS e vem fornecendo medicamentos gratuitos para a terapia com múltiplas drogas em todo o mundo. E, em fevereiro de 2022, eles firmaram parceria com a Fiocruz para realizar um estudo utilizando inteligência artificial (IA) para acelerar o diagnóstico da hanseníase.
“Chamo isso de aplicar tecnologia de última geração a uma doença primitiva”, define Sunkara.
Existem pelo menos outras 20-30 doenças da pele que se apresentam na forma de manchas brancas, segundo ele. Usando o algoritmo de IA para analisar as diferentes formas em que a luz é refletida na superfície de cada doença da pele, é possível identificar os casos de hanseníase e distingui-los de outras condições similares com muito mais precisão.
Seu estudo, publicado na revista Lancet Regional Health, definiu a previsão em 90%. Mas, com 1.229 imagens de pele, o conjunto de dados ainda é pequeno. Se o exame tiver sucesso em escala maior, poderá um dia se tornar uma ferramenta útil para acelerar o diagnóstico e o tratamento da hanseníase.
Estigma persistente
Os avanços modernos no tratamento e diagnóstico da hanseníase mudaram a vida de muitos pacientes, mas existe um problema que ainda não desapareceu totalmente: a discriminação continua implacável.
“A hanseníase segue sendo uma questão de direitos humanos profundamente enraizada”, segundo Alice Cruz, Relatora Especial das Nações Unidas sobre a eliminação da discriminação contra pessoas afetadas pela hanseníase, uma função que ela desempenha desde novembro de 2017.
Cruz afirma que existe mais de uma centena de leis que discriminam as pessoas com hanseníase em todo o mundo, criando uma forte estigmatização que pode agir como barreira para o tratamento.
Em alguns países, a hanseníase pode ser motivo de divórcio. A Índia era um deles, até alterar suas leis em 2019. Muitas pessoas afetadas pela doença ainda lutam para conseguir emprego e ter acesso à assistência médica e à educação.
“Os países deveriam fazer todo o possível para abolir as leis discriminatórias e substituí-las por políticas que possam garantir direitos sociais e econômicos às pessoas afetadas pela hanseníase”, afirma Cruz.
“Indo mais adiante, deveríamos nos perguntar: nossos sistemas de saúde estão trabalhando para oferecer total acessibilidade para as pessoas afetadas pela hanseníase?”, questiona ela. “Isso porque a hanseníase é muito mais que uma doença. Ela se tornou um rótulo que desumaniza as pessoas atingidas por ela.”
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Future.
(BBC)