Na contramão de Europa e EUA, Brasil caminha para liberar mais agrotóxicos
Se o novo PL 6.299/2002, aprovado na noite de segunda-feira por uma comissão especial da Câmara dos Deputados, virar a nova lei de agrotóxicos, o Brasil estará na contramão das decisões recentes de países da União Europeia.
É o que diz a pesquisadora Larissa Mies Bombardi, do Laboratório de Geografia Agrária da Universidade de São Paulo (USP), autora do atlas Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia, de 2017, que mapeia o uso dessas substâncias em todo o país e o compara com o uso nos países da UE.
“Para se ter uma ideia, eles (os europeus) acabaram de proibir o uso de inseticidas chamados de neonicotinoides, que são dos mais vendidos no mundo, por que pesquisas mostravam uma relação entre eles e a mortandade de abelhas”, disse à BBC News Brasil.
“Aqui, essas substâncias ainda são usadas. E agora, com o novo projeto de lei, ainda vamos ampliar o leque de agrotóxicos disponíveis no mercado.”
O projeto, proposto originalmente pelo ex-senador e atual ministro da Agricultura Blairo Maggi (PP-MT) e cujo relator é o deputado Luiz Nishimori (PR-PR), também dá mais poderes ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) para realizar a avaliação toxicológica das substâncias e aprovação do seu uso, dimuindo as competências de controle e fiscalização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) no processo.
O debate vem causando polêmica entre ruralistas, a favor do PL, e órgãos como Anvisa, Ibama, Fiocruz, Instituto Nacional do Câncer (Inca) e Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), que se posicionam contra, afirmando que a mudança reduz os níveis de segurança para o consumidor.
Os produtores reclamam da demora na liberação dos agrotóxicos e dizem que, quando o governo autoriza a aplicação, os produtos já estão obsoletos. Pessoas favoráveis ao novo projeto de lei afirmam que ele é mais eficiente e condizente com as normas internacionais de uso das substâncias.
Opositores, por sua vez, afirmam que a nova medida favoreceria apenas os fabricantes dos químicos, facilitando a entrada de produtos possivelmente danosos à saúde e ao ambiente no mercado.
O PL foi aprovado na comissão após pelo menos oito tentativas de votá-lo, que foram palco de debates acalorados, xingamentos entre deputados e manobras para atrasar a decisão sobre o tema. O texto ainda não tem data para ser levado ao plenário da Câmara.
A Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, ligada ao MAPA), além de organizações e sindicatos que representam produtores das substâncias usadas nas lavouras, se posicionaram a favor da medida.
Do outro lado, reuniram-se, além de Anvisa, Ibama e Consea, organizações ambientalistas e até celebridades, como Caetano Veloso, Bela Gil e atores de televisão, que chamam o projeto de “PL do Veneno”.
Saiba quais os principais pontos polêmicos da medida:
‘Risco inaceitável’
Uma das principais controvérsias do projeto é a ideia de que agrotóxicos só serão proibidos no país caso apresentem “risco inaceitável”, que é definido como “nível de risco considerado insatisfatório por permanecer inseguro ao ser humano ou ao meio ambiente, mesmo com a implementação das medidas de gerenciamento dos riscos”.
Atualmente, a lei 7.802/1989, que rege o uso de agrotóxicos, é mais rígida, e proíbe especificamente substâncias que revelem características teratogênicas, carcinogênicas ou mutagênicas (que provoquem câncer ou alterações em embriões ou no DNA), de acordo com resultados de experiências da comunidade científica; que provoquem distúrbios hormonais e danos ao aparelho reprodutor, que se revelem mais perigosos para o homem do que os testes de laboratório, com animais, tenham podido demonstrar e que causem danos ao meio ambiente.
“Na prática, essa proposta é um grande retrocesso porque põe a perder o nosso parâmetro de precaução. Como vamos saber o que é risco inaceitável? Como exatamente se define isso?”, diz Bombardi.
“Já somos muito mais permissivos no limite de substâncias que permitimos que sejam usadas nas plantações e que estejam nos alimentos e na água. Por exemplo, permitimos um nível de glifosato na água (considerado cancerígeno para animais e provavelmente para o homem pelo Centro Internacional de Pesquisa sobre o Câncer) até 5 mil vezes maior do que a UE permite”.
De acordo com o atlas, o limite máximo de resíduos permitido em alguns alimentos no Brasil chega a ser 400 vezes superior ao da União Europeia. No caso da água, essa diferença pode ser de 5 mil vezes mais.
A definição de risco inaceitável, de acordo com a PL, seria feita por técnicos responsáveis por fazer uma avaliação de risco, outra novidade introduzida no projeto.
Análise de risco, não só de perigo
Atualmente, os órgãos responsáveis no Brasil fazem uma avaliação do perigo dos agrotóxicos, ou seja, de qual perigo eles podem oferecer à saúde e ao ambiente, segundo a ciência, como determina a lei. Em outros países, como na União Europeia e nos Estados Unidos, também é feita, juntamente com a avaliação do perigo, uma análise de risco.
Esta análise leva em conta a exposição que as pessoas realmente têm ao produto no dia a dia, caso ele seja aplicado da maneira correta definida pela empresa que o fabricou.
“Este é o grande avanço do PL. Possibilitar uma analise dos produtos não apenas pelo perigo, mas pelo risco, que é o conceito moderno de avaliar qualquer substância e processo. É um procedimento mais complexo, mas muito mais seguro em termos de ambiente e de saúde”, disse à BBC News Brasil José Otávio Menten, professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq/USP) e presidente do Conselho Científico Agro Sustentável (CCAS).
A questão é que cada agrotóxico deve ter uma dosagem e uma maneira correta de aplicar em produtos diferentes, o que torna a análise de risco complexa e, 0também, “não tão objetiva”, segundo Menten.
“Esse procedimento requer técnicos mais experientes, porque ele não é tão objetivo. É um dos procedimentos que mais exigem qualificação e preparo de técnicos que possam entender até que ponto a gente pode e não pode ir”, afirma.
Anvisa e Ibama reclamam da falta de recursos para o preparo de profissionais para avaliar com mais rapidez, de acordo com a lei atual, os pedidos de registro de agrotóxicos. Em nota técnica sobre o PL 6922/2002, a Anvisa diz que, o país não tem estrutura, atualmente, para fazer a análise de risco dos agrotóxicos.
“Há estratégias de possibilidade de avaliação do risco que não estão ainda internacionalmente pacificadas, o que demanda maturidade regulatória, necessidade de condução de estudos para quanficação da exposição no Brasil e técnicos especializados em número suficiente para o atendimento da demanda, o que não corresponde à realidade brasileira no momento”, afirma o órgão.
Para Menten, no entanto, isso são “limitações” que o país pode ultrapassar. “Os nossos técnicos talvez tenham que ser reciclados, atualizados. Não é uma coisa que vai acontecer de um dia para o outro, mas não podemos ficar parados por falta de técnicos suficientes. Vamos qualificando nossos técnicos com o tempo.”
Mais substâncias no mercado provisoriamente
A lei atual de agrotóxicos também não estabelece prazos-limite para que os registros de novos produtos sejam concedidos. Na prática, o processo pode levar entre cinco e oito anos, e os produtores reclamam que essa lentidão impede que o Brasil consiga usar produtos mais eficientes e menos tóxicos que estão no mercado internacional.
Com o novo PL, ficam estabelecidos os prazos de 30 dias – para o registro especial temporário de um produto que precise ser usado para pesquisas acadêmicas – até 24 meses (dois anos), para produtos completamente novos no Brasil.
No entanto, se esses prazos de análise não forem cumpridos pelos órgãos federais, as empresas, segundo o projeto, podem pedir um registro temporário para seus produtos, e já colocá-los no mercado enquanto eles esperam a aprovação (ou reprovação) do Ministério da Agricultura.
Para conseguir esse registro temporário, basta que o produto tenha sido autorizado da mesma maneira por três países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), organização que reúne alguns dos países mais desenvolvidos do mundo.
“A OCDE tem 37 países. Nela estão Japão e União Europeia, que podem ser exemplos no uso de agrotóxicos. Mas também estão México, Turquia e Chile, que nem sempre são bons exemplos. Quais três países serão escolhidos? Novamente, não fica claro”, questiona Larissa Bombardi.
O projeto de lei diz que os três países que aprovaram previamente o agrotóxico devem obedecer ao Código Internacional de Conduta sobre a Distribuição e o Uso de Pesticidas da FAO, organização da ONU para a alimentação.
“Um terço dos 504 agrotóxicos que são autorizados no Brasil são proibidos na UE. Dos dez mais vendidos no Brasil atualmente, dois são proibidos lá. O que pode acontecer agora é que essa diferença pode aumentar. Outros agrotóxicos que o Brasil proibiu podem voltar a ser avaliados e permitidos”, diz a pesquisadora.
A possibilidade de colocar agrotóxicos no mercado provisoriamente da forma como proposto no PL não existe na União Europeia, ressalta a pesquisadora.
Para José Otávio Menten, que é favorável ao novo projeto de lei, o registro provisório é o ponto mais “delicado” e “preocupante”.
“Se esse registro servir para que haja um estímulo para a análise mais rápida, é até válido. É uma maneira de pressionarmos por maior eficiência. Mas temos de lutar pela melhoria do Ibama e da Anvisa para usarmos esse dispositivo da lei em casos raros, que não vire uma regra”, pondera.
“Temos cerca de 30 produtos já registrados em outros países e não no Brasil. E, se estão registrados em países onde passaram por análise bem feita, espera-se, acho que a chance de termos problemas com eles é pequena. Mas o ideal seria que eles só entrassem no mercado depois da consulta aos nossos órgãos, e que eles fossem ágeis.”
Atualmente, a Anvisa tem 32 agrotóxicos novos – ou seja, cujas moléculas nunca foram registradas no Brasil – esperando pelo parecer que pode conceder o registro para serem vendidos no país.
A agência, no entanto, é apenas uma parte da equação, que envolve os pareceres do Ibama e do Ministério da Agricultura. O Ibama tem cinco produtos ainda em análise na lista divulgada em seu site. Até o fechamento desta reportagem, o Ministério da Agricultura não havia divulgado quantos agrotóxicos estão pendentes do registro no Brasil.
Sem reavaliação determinada por lei
Segundo Larissa Bombardi, o PL também perdeu a oportunidade de implantar uma reavaliação cíclica dos registros dos agrotóxicos, como em países desenvolvidos.
Nos Estados Unidos, eles devem ser reavaliados a cada 15 anos. No Japão, a cada três. Na Europa, são 10 anos. Após esse período, as autorizações devem ser revistas de acordo com as novas pesquisas científicas disponíveis sobre elas. Em todos os casos, a sociedade também pode pedir a reavaliação.
No Brasil, uma substância só é reavaliada atualmente mediante pedido. O glifosato, por exemplo, está sendo reavaliado desde 2008. Na UE, sua licença foi renovada no ano passado, mas continua sendo questionada por instituições de saúde. A França determinou que o produto será proibido a partir de 2022.
Menten, no entanto, diz que o sistema brasileiro é “mais inteligente”. “Teríamos que parar outros serviços para fazer essa revisão, se ela fosse implantada. Mas sempre que houver um fato novo, podemos revisar”, diz.
Agrotóxicos x Fitossanitários x Pesticidas
A controvérsia em relação ao projeto de lei chegou até mesmo ao nome utilizado para se referir aos produtos químicos usados na agricultura.
Inicialmente, o PL sugeria que o nome agrotóxicos fosse substituído por “produtos fitossanitários”. Em resposta à reclamação de opositores, o relator do projeto, Luiz Nishimori, decidiu pelo termo “pesticidas”.
“Além de depreciativo, o termo agrotóxico só é utilizado no Brasil”, diz o relatório.
“Cabe lembrar que a escolha natural seria o termo adotado em Portugal, que denomina essas substâncias pesticidas. Nas principais línguas do mundo, adotam-se variações com a mesma etimologia: pesticidas (espanhol), pesticide (inglês), Pestizide (alemão), pesticides (francês), pesticidi (italiano), pesticider (dinamarquês e sueco), pesticiden (holandês), пестициды (pestitsidy – russo). Ademais, os tratados e acordos internacionais utilizam o termo pesticidas.”
Para Menten, a denominação não é relevante, mas a expressão “agrotóxicos”, de fato, inadequada.
“Pesticida também não é adequado, é qualquer produto para matar pragas. Se eu estou falando apenas de produtos para manejo de pragas agrícolas, o correto é fitossanitários. Mas isso tem uma importância menor”, diz.
Já Larissa Bombardi, que também se opõe a esta mudança, afirma que a questão não é “apenas semântica”.
“É uma estratégia para mascarar o risco para a saúde humana que esses produtos têm. Quando você fala em pesticida, diminui a gama de significados. Os dois mais vendidos no Brasil são herbicidas, por exemplo, não pesticidas. Pesquisadores europeus já me disseram que era um ganho termos a expressão ‘agrotóxico’ na nossa lei, e que não deveríamos perder”, diz.(BBC)