A fé e a falta dela no retrato do Brasil de Michel Temer
Forma de conhecimento que dispensa a razão, ela é um componente político que moveu o trabalhismo de Getúlio, o desenvolvimentismo de JK e a modernização do Estado de FHC
Michel Temer nunca despertou propriamente o sentimento de fé entre os brasileiros.
Havia, no máximo, a ideia quase despersonalizada de que o país entraria num período virtuoso após a queda de Dilma Rousseff.
A fé é um componente importante na política. A Proclamação da República (1898) e o governo Juscelino Kubitschek (1956-1960) geraram a fé na modernização das instituições e da economia industrial.
Getúlio Vargas (1930-1945) gerou a fé da inserção na vida pública de uma nova massa de trabalhadores urbanos.
Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) gerou a fé na modernização do Estado, e Luiz Inácio Lula da Silva (2003-20010), para seus partidários, trabalhou com a fé da diminuição das desigualdades.
Esse conjunto de lideranças não cumpriu necessariamente aquilo que propunha. Mas a sociedade acreditava –tinha fé – de que se trilhava o caminho rumo a esses objetivos diversos.
Temer levantou a bandeira das reformas e da moralização das empresas estatais. Empacou no meio do caminho, com as crises que a Lava Jato gerou em sua equipe e que hoje comprometem seu mandato.
Neste início de junho, o país não está apenas inseguro quanto ao desfecho da atual tempestade política. Está sobretudo desprovido de fé com relação a seu próprio destino imediato.
É bom votar para presidente? Claro que sim. A oposição embarca nessa certeza difusa para propor diretas-já, apostando na fé que as diretas evocam para dar legitimidade às decisões do Executivo, por mais que implique contornar a Constituição e favorecer a candidatura de Lula.
Mas é uma fé empobrecida pela sua imediata circunstância. Eleições diretas ocorrerão dentro de 17 meses -e até lá os cenários podem ser bem outros.
AS RAÍZES HISTÓRICAS
Fé é quase tudo. Ela existe na relação o torcedor com seu time de futebol, do eleitor com seu partido político, do consumidor com determinada marca de produto.
Para os historiadores das mentalidades, a fé é uma forma de conhecimento que não leva necessariamente em conta a razão.
Não é racionalmente que se tem fé em Deus, que não é objeto de uma demonstração palpável. É assim desde que a fé nasceu com o monoteísmo do patriarca Abraão (2º milênio AC).
Em termos religiosos, a fé cresceu com o judaísmo, sistematizado por Moisés Maimônides (1138-1204). E também entre os muçulmanos, com o profeta Maomé (570-632).
E tem uma longa história no cristianismo, com os concílios de Nicéia (325) e Constantinopla (391), com São Paulo, um rabino convertido, ou com santo Agostinho ou Tomás de Aquino.
Nem sempre a fé nos conduz na direção correta. Basta lembrar a visão geocêntrica do universo – a Terra como o planeta em torno do qual tudo mais giraria em órbita – com base em interpretações sectárias das escrituras.
A verdade estava com Copérnico, Galileu e Giordano Bruno (séculos 15 a 17), que ousaram desafiar os teólogos que inspiravam a inquisição. Bruno foi condenado à fogueira e queimado em 1600.
Outro tipo de confusão surgiu com Charles Darwin (1809-1882) e a teoria da evolução das espécies, que trombava com a fé de que o homem fora criado de uma só vez, à imagem e semelhança de Deus.
Hostilizado por teólogos, o pai da biologia moderna só foi formalmente reconhecido pelo Vaticano apenas com João Paulo 2º, em sua encíclica Fé e Razão (1998), por mais que nos 100 anos anteriores o cristianismo se reconciliasse informalmente com essa forma antes escandalosa de explicar a origem do homem.
A FÉ PODE SER MODERNA?
Max Weber, em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo (1920) foi quem formulou de maneira mais radicalmente original a relação entre a fé e a economia.
No final do século 18, disse ele, regiões da Alemanha em que prevaleciam valores protestantes foram as primeiras a darem o salto do artesanato das corporações para o modelo fabril moderno.
Esses capitalistas se abasteciam na ideia do trabalho individual como forma de geração de riquezas. A fé no trabalho era, então, central para compreender o núcleo desse longo processo.
Na mesma Alemanha e na mesma época, os católicos buscavam prioritariamente cargos dentro do Estado, da burocracia à rede de ensino.
É curiosa a analogia atual, mesmo imperfeita, entre a fé no trabalho e a fé no Estado. O Estado como provedor de direitos – ideia hoje predominante das esquerdas – se contrapõe à ideia central do mercado como gerador de riquezas.
São duas formas de fé que coabitam na sociedade brasileira. E que se manifestam em temas tão controvertidos quanto a reforma da Previdência.
Os partidários do Estado temem que ela “retire direitos”, enquanto os partidários da racionalidade econômica apostam nos efeitos que a reforma terá no equilíbrio fiscal e no aumento da capacidade de investimento do Estado.
São basicamente, então, duas fés que montam, cada uma a seu lado, um forte eixo do antagonismo político.
O curioso, no entanto, é que os que têm fé nos efeitos da modernização da Previdência não tenham, com a mesma intensidade, fé no presidente Michel Temer.
Temer não é apenas fraco por ser pouco carismático. Ele é fraco por não ser objeto de alguma forma de fé que seja compartilhada por grupos partidários, corporativos ou acadêmicos.(DC)