Além da raiva social
Existe a raiva social. Em época de recessão e desemprego de 14,2 milhões de pessoas, é natural o sentimento de rejeição ao governo, ainda mais quando ele é impopular. Há também, como em toda greve, a luta política. Essa mistura fortaleceu o movimento, mas isso não quer dizer que os líderes tenham razão. O absurdo é a violência, de manifestantes e da polícia, como forma de crescer ou reprimir a paralisação.
As reformas são necessárias e afetam mais os grupos que têm privilégios. Mas este é um governo que vive um equilíbrio difícil. Ele tem apoio político, mas não social. Se a manifestação assustar os políticos, que já estão com baixa credibilidade, reduzirá a chance de aprovação de projetos do governo. Os 296 votos na Câmara para a reforma trabalhista seriam insuficientes se estivesse sendo votada uma Proposta de Emenda Constitucional. Se os protestos reduzirem o tamanho da base aliada, haverá reflexos na frágil recuperação econômica que está ocorrendo.
O desemprego continua aumentando. O governo do PT aumentou muito a oferta de emprego e depois produziu a crise que levou à escalada do desemprego em grandes proporções. No segundo e interrompido mandato do governo Dilma, o número de desempregados saltou de seis milhões para 12 milhões. O IBGE divulgou ontem que o drama já atinge 14,2 milhões de pessoas. Isso fortalece qualquer protesto.
Os que participaram da greve estão, em grande parte, convencidos que protestam em defesa dos direitos que estariam sendo subtraídos. Os líderes, contudo, sabem o que há de verdade em cada palavra de ordem. Sindicatos e centrais lutam contra o governo e também em defesa do dinheiro que a reforma trabalhista pode tirar deles com o fim do imposto sindical.
A Previdência está de fato quebrada e precisa de mudanças. Se não forem estas, quais serão? A oposição à reforma não diz que proposta tem. Há defesa de teses boas, como a de cobrança dos devedores e a redução das isenções. Mas isso não equilibra o sistema. É falso que a reforma trabalhista tenha acabado com direitos dos trabalhadores, mas também ela não é o que o governo diz, nem prepara o país para o mundo do trabalho da nova economia. Contudo, cria espaços onde trabalhadores podem regularizar sua situação no trabalho remoto, no trabalho intermitente, ou nas jornadas diferenciadas. Algumas das propostas ampliam direitos, como a da demissão negociada que permite ao trabalhador acesso ao FGTS mesmo quando pedir demissão. A Caixa e as construtoras começaram a reclamar contra isso, como se fosse delas o dinheiro do trabalhador.
Foi espantoso na noite da votação da reforma trabalhista o desfilar da demagogia no microfone da Câmara dos Deputados. Lá estavam o PT e seus satélites: PCdoB, PSOL, Rede. E repetiam, aos gritos, que defendiam os trabalhadores. Não houve uma palavra destinada aos que não têm qualquer direito. Eles defendiam os de carteira assinada, que estão no mercado formal, que têm os direitos garantidos e que acessam a Justiça do Trabalho. Os invisíveis permanecem invisíveis.
Seria bem-vinda uma oposição realmente de esquerda no Brasil. Mas só temos a corporativista. Seria bem-vinda uma esquerda que olhasse com sinceridade para os números que o IBGE havia divulgado na parte da manhã daquela quarta-feira, mostrando os milhões de trabalhadores sem proteção. Mas a esquerda brasileira tem compromissos é com os grandes sindicatos e centrais sustentados pelo dinheiro público. A reforma que está sendo votada atinge diretamente seus interesses. Tudo bem que eles se defendam, o problema é que dizem que o fazem em nome do povo.
Neste momento, é enorme o sentimento de raiva contra a crise, assim como as dificuldades e o desemprego, e muitos dos que protestaram tinham em mente essa sensação. Interessa pouco, a esta altura, dizer que foi o PT que criou a crise. Normalmente, a insatisfação social se dirige a quem governa. Esta administração foi herdeira da crise econômica e tem sua própria carga de impopularidade. Há boas razões para protestar. Isso está sendo usado pela oposição porque é natural que seja assim na luta partidária. Quem conhece a cena política sabe o quanto o movimento de ontem tinha de defesa de interesses corporativos fingindo ser a defesa dos direitos do povo (Blog da Miriam Leitão)