CEO do Grupo City banca Ceni no Bahia: “Sofisticação e trabalho do mesmo nível do Guardiola”
Responsável por comandar os 13 clubes do City Football Group em quatro continentes diferentes, Ferran Soriano dedicou os últimos dias a cuidar de assuntos do braço brasileiro do conglomerado: o Bahia.
O dirigente espanhol participou de reuniões em São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, onde também assistiu de perto à derrota do Bahia para o São Paulo e a alguns protestos da torcida tricolor.
As críticas de parte do público, porém, não afetam a avaliação que Soriano faz do trabalho de Rogério Ceni. Em entrevista exclusiva ao ge, o CEO do grupo City bancou a permanência do técnico no Bahia em 2025 e não poupou elogios a ele:
Posso dizer que o nível de sofisticação e de trabalho do Rogério é do mesmo nível do Pep Guardiola
— Ferran Soriano, CEO do Grupo City
- Bahia fará pré-temporada em Girona, na Espanha
- Organizada do Bahia protesta e tem reunião com líderes do elenco
CEO do Grupo City revela que Bahia fará pré-temporada em Girona, na Espanha
Neste bate-papo, Ferran Soriano faz um balanço do trabalho no Bahia, analisa o mercado brasileiro, comenta o novo Mundial de Clubes e passa por outros temas ligados ao futebol. Confira:
Como tem sido a experiência do Grupo City no Brasil? O que já funcionou como o planejado neste início de trabalho no Bahia e o que ainda precisa ser aprimorado?
– Até hoje foi muito positivo mesmo. É óbvio que a gente não vai ficar contente até ganhar o campeonato, mas o progresso é evidente. Eu me lembro muito bem do ano passado, a gente estava lutando para não ser rebaixado e foi bem difícil. Pessoalmente, me lembro daquele dia como um dia muito complicado, Eu estava numa reunião da UEFA em Copenhague, acordei às 3h da manhã para assistir ao jogo e era uma pressão difícil, negativa. Hoje temos outra pressão, mas é uma pressão positiva. A pressão de tentar classificar para a Libertadores. O progresso é evidente, mas faz parte de um caminho que acabou de começar. A gente está aqui depois de 18 meses. Se houve alguma surpresa? Nem tanto, porque a gente conhecia bem o futebol brasileiro. Mas dá para constatar a competitividade. O nível do futebol brasileiro é alto. É alto pela intensidade do jogo, em comparação com outras ligas do mundo, é alto também porque tem talento. Tudo foi positivo, mas mostra a complexidade e o tamanho do desafio.
Toda vez que a gente tem a oportunidade de conversar com alguém na sua posição, que traz uma experiência internacional, há aquela questão: o que falta para que o Campeonato Brasileiro consiga ser atrativo em comparação com outras ligas do mundo? Você vê potencial para o Brasil se igualar ou estar próximo de mercados europeus?
– Sem dúvida. À parte as opiniões pessoais, quem gosta mais de uma liga ou outra, uma forma de mesurar isso aí é o tamanho do negócio. A Premier League, claro, movimenta 4 bilhões de dólares por ano. Vamos dizer que o tamanho do mercado do TV brasileiro pode ser 400 milhões, é 1 a 10. Mas a comparação não é essa. A comparação é com a França, e já está muito perto. A França deve ser 600, 700 milhões. A Itália é 1 bilhão. Então, está perto. A progressão é clara, e eu acho que, com o nível de profissionalismo que se vê na gestão dos clubes brasileiros… Eu acompanho o futebol brasileiro há muito tempo, e a profissionalidade da gestão melhorou muito, muito mesmo. E é um caminho que eu acho que leva o futebol brasileiro a estar entre as grandes ligas do mundo. Se comparar com a Premier League é difícil, mas não vejo por que não a liga brasileira daqui a uns três, quatro, cinco anos, não ser do mesmo tamanho que a liga italiana, por exemplo.
O que falta para a gente chegar nesse nível que você menciona?
– Falta tempo. Falta só um pouco de tempo. Lembre-se que talento existe. E o que temos que conseguir é que o talento fique um pouco mais de tempo aqui antes de eventualmente algum deles ir para a Europa. Para isso a gente precisa de mais receita, crescimento econômico dos clubes, o que já está acontecendo. Eu acho que é uma questão de tempo. E também, como eu falei, o gerenciamento dos clubes vai melhorar, e já está melhorando. Eu falo com os meus colegas aqui, presidentes de outros clubes, e tem um nível de conhecimento do negócio, de profissionalismo que é do nível de qualquer outro lugar do mundo.
A gente sabe que o torcedor fica ansioso para o momento em que o Bahia seja dominante, de fato, no futebol brasileiro, tal o City é na Inglaterra, por exemplo. Qual o prazo que vocês trabalham para isso? Ano passado o Bahia brigou para não cair e em 2024 luta por vaga na Libertadores. Ainda assim, está fora da disputa pelo título. O avanço foi num ritmo menor do que o esperado?
– Não, não. Avançou o que a gente imaginou ou até mais. O Manchester City foi o melhor clube do mundo, e o número de títulos que a gente ganhou é espetacular. Mas lembre-se: são 15 anos. O ano zero do Manchester City é 2008. E a gente não ganhou um campeonato nem no primeiro ano, nem no segundo, no terceiro e no quarto. O Bahia já era um grande clube, é um grande clube, mas o nosso movimento começa 18 meses atrás. Depois de 18 meses, passar de potencial rebaixamento a estar em sétimo, sexto, oitavo na tabela é um progresso maior do que aconteceu em Manchester. Então, estamos no caminho. Obviamente, não posso dizer se vai demorar três anos, quatro, cinco, seis anos, mas vai chegar. Não tenho dúvida.
– É importante também que o crescimento do projeto seja sustentável. Não adianta crescer muito para depois cair. E eu não tenho dúvida que estamos no caminho e vai chegar (o momento dos títulos). Eu entendo, a torcida é quem manda. O clube é deles, a gente só tem a custódia do clube nessa etapa da história. Eles cobram, e está bem. Mas o nosso trabalho precisa de frieza. Precisa planejamento, prudência e fazer as coisas passo a passo. Nesse caminho, estou mais do que satisfeito de sentar aqui com a pressão. Eu fui no jogo ontem e senti a pressão muito, mas é uma pressão positiva. A gente está sentando numa pressão positiva para classificar para Libertadores. Já passou a época da pressão negativa, de sofrer pelo rebaixamento.
E culturalmente aqui no Brasil, essa pressão muitas vezes ela é canalizada na figura do treinador e a gente percebe isso neste momento. Eu queria que você falasse da filosofia do Grupo City em manter o treinador por mais tempo, desse respaldo que é dado ao Rogério Ceni e também como vocês avaliam o trabalho dele até aqui.
– Isso é óbvio, né? Você me perguntou antes o que falta, e uma das coisas que falta é paciência. Se não me lembro mal, 14 técnicos foram trocados no Brasileirão deste ano. É impossível. E eu sei, vocês sabem, todo mundo sabe que dar para alguém um trabalho difícil de liderança de um grupo e trocar depois de perder três jogos é uma ideia ruim. E isso acontece mais no Brasil do que deveria, eu acho. Acontece mais na Itália também. O ranking é Brasil, depois a Itália, depois a Espanha e na Inglaterra acontece pouco. No meu tempo no Manchester City a gente teve dois técnicos. E é assim que pode ser feito um projeto a longo prazo. Uma coisa que eu acho que deveria mudar no futebol brasileiro é a paciência com o técnico. O técnico precisa de tempo para trabalhar.
– No nosso caso, a gente conhece muito bem o trabalho do Rogério Ceni, que eu posso dizer que é excelente. Excelente pelo que a gente vê aqui, mas também em comparação com os outros técnicos do grupo. Nós temos 13 clubes de futebol no mundo. Alguns deles com técnicos extraordinários, como o Pep Guardiola. E eu posso dizer que o nível de sofisticação e de trabalho do Rogério é do mesmo nível do Pep Guardiola. Então, estamos contentes, ele fica, vai ficar agora e vai ficar a próxima temporada com certeza. E, em geral, eu não acho que você vê o resultado de um técnico trabalhando bem depois de um ano e meio, dois anos.
E como você enxerga a nossa mão de obra, principalmente na parte administrativa?
– Eu acho que são dois desafios que existem no Brasil e que não existem em outros lugares: um deles é a governança dos clubes que são associações esportivas. Em geral, os clubes que são SAFs, que são empresas, têm uma vida mais fácil do que os que têm que gerenciar um clube e tem uma votação. Isso acontece no mundo inteiro. Também na Espanha, você tem o Barcelona ou o Real Madrid, que são clubes mais políticos, e outros que são menos. Alguém me perguntou hoje qual é a diferença entre gerenciar o Barcelona, como eu fazia, e o Manchester City. Eu falei: a diferença é que no Barcelona, numa semana boa, eu podia trabalhar 50% da semana. O resto era política.
– No Manchester City, eu trabalho 100% da semana. Isso no Brasil está exagerado por causa das eleições a cada dois, três anos. E isso torna tudo muito difícil mesmo. Muito difícil porque, naturalmente, quem gerencia um clube ganha as eleições hoje e já tem que estar pensando nas próximas eleições. E as decisões, que às vezes deveriam ser de longo prazo, se convertem em curto prazo por causa da política. Esse é um problema específico do Brasil. E não estou dizendo que a SAF ou a associação esportiva seja melhor ou pior. Estou dizendo que, mesmo na associação esportiva, precisa ser mais tempo. Ninguém pode fazer um projeto em dois anos. E depois tem a questão da pressão da torcida. Ela tem o meu máximo respeito, porque é a dona. Mas, às vezes, a pressão faz que as diretorias tomem decisões muito rápidas e muito emocionais. A gente tem duas dicas lá no City Football Group: a gente não toma decisões segunda-feira. A gente ganhou ou perdeu o fim de semana? Não decida nada. E a outra dica é: antes de decidir, coloque a cabeça na geladeira. No Brasil, às vezes, parece que é mais difícil. A pressão obriga a tomar decisões muito rápidas e, às vezes, emocionais. E, obviamente, se você perde quatro jogos é muito mais fácil trocar o técnico do que os jogadores. De jogadores é impossível. Mas é uma má decisão. Se você é torcedor, não precisa ter frieza, mas do nosso lado, na minha posição, precisa ter frieza todos os dias do ano.
Te perguntamos sobre a mão de obra na gestão dos clubes e gostaria agora de falar do “pé de obra” brasileiro. Nosso país não ganha uma Copa do Mundo há 22 anos e isso gera questionamentos sobre a qualidade não só do nosso jogo, mas da formação dos nossos atletas. Há quem afirme até que a geração atual não é tão boa quanto gerações anteriores. Como o mercado internacional vê o jogador brasileiro hoje?
– O jogador brasileiro continua a ter muito talento. Não mudou nada. Eu sei também que as expectativas do torcedor do Brasil e também da Seleção é ganhar a Copa. Mas é muito difícil mesmo. Não é razoável pedir para ninguém ganhar a Copa uma e outra vez. Tem competidores muito fortes. O futebol tem que ser profissionalizado muito bem. Houve um caso da Espanha que chegou a um nível de profissionalização e trabalho espetacular. Depois foi a Alemanha, teve um tempo muito bom. É muito difícil. Então é injusto pedir para a seleção brasileira ganhar sempre. O talento brasileiro existe. É óbvio que tem épocas. E não só no futebol brasileiro, em qualquer futebol. Olha para o futebol espanhol, teve aquela época maravilhosa com o Xavi, Iniesta, Puyol e o Piqué. Mas passou, agora tem outros. E tem que ter a paciência de esperar para os jogadores crescerem.
– Uma coisa que sim mudou, eu acho, é a exigência do futebol europeu do máximo nível, enquanto a exigência física e a velocidade mental. Tipicamente, no futebol brasileiro você recebia a bola e tinha um segundo, dois, três para pensar. Você pensa dois segundos na Premier League e acabou. Os jogadores da América Latina em geral quando chegam lá têm que se adaptar a essa rapidez, que é uma rapidez mental. Antes da bola chegar você já tem que saber o que vai fazer, onde estão os seus companheiros e o que vai fazer. E é verdade que os jogadores que vêm do Brasil e da América Latina em geral precisam de um período de adaptação. Porque a velocidade do jogo é diferente. Mas, é óbvio, quando eles se adaptam, o resultado é espetacular. Olha o Savinho, um jogador muito jovem, que fez a carreira toda conosco. Ele foi no Girona, agora está no Manchester City, muito jovem mesmo. E alguém pensou que chegando no Manchester City ele teria muitas dificuldades e não jogaria muito. Está jogando muito, tem talento, já passou pela sua terceira temporada no futebol europeu e já se adaptou a esse ritmo um pouco mais alto.
Trazendo um pouco essa discussão para o âmbito dos clubes. Quando o grupo City assume o Manchester o clube ainda não era uma marca global. No Brasil é comum ouvirmos dirigentes prometendo, especialmente em épocas de eleição, a tal “internacionalização da marca”. Esse tipo de entrada no mercado internacional para um clube brasileiro, seja o Bahia ou outro, é algo muito distante?
– Eu acho distante por uma questão de prioridade. O tamanho do mercado brasileiro, você falou, é tão grande que a prioridade do futebol brasileiro tem que ser o Brasil. Há muito a crescer no Brasil, muito mesmo. Então, não é eficiente agora a gente tentar competir, por exemplo, no mercado dos Estados Unidos. No mercado dos Estados Unidos só há três ligas que têm sucesso. A MLS, que é a liga própria, a Liga Mex, porque tem 40 milhões de mexicanos nos Estados Unidos, e a Premier League. A Liga Italiana não está conseguindo vender os direitos de televisão. A Liga Alemã, pouco. A Liga Francesa, nada. Então, por que os clubes brasileiros iriam competir numa situação tão complicada quando a oportunidade está aqui? A oportunidade está no Brasil, o país do futebol, com tantos torcedores.
– No caso do Bahia, claramente, me concentraria no Brasil, me concentraria na Bahia, me concentraria nos baianos que moram fora da Bahia, inclusive fora do Brasil, e no Brasil. Mas não acho que deveria ser uma prioridade para o brasileiro (a internacionalização) e não é uma prioridade para o Bahia. Isso vai acontecer naturalmente. O Bahia tem uma situação única, privilegiada. Bahia é uma das marcas fortes do Brasil. Se você pergunta lá na Europa, nos Estados Unidos, quais são as marcas brasileiras? Bahia é uma. E o clube chama-se Bahia. E a marca Bahia está cheia de conteúdo positivo, de conteúdo cultural, de conteúdo de comunidade… Isso vale muito, mas eu acho que a prioridade é desenvolver aqui. E naturalmente vai crescer pelo mundo. Já cresce, né? O Bahia, por exemplo, nos últimos dois anos foi fazer uma apresentação na Inglaterra, em Manchester. A gente chama de o dia do Bahia, e é espetacular. São os passos que a gente está dando, mas eu acho que devemos nos concentrar no Brasil.
E já que estamos aprofundando um pouco mais no Bahia, eu queria que você apresentasse os principais objetivos que vocês têm em curto, médio e longo prazo.
– A curto prazo era claro: estabilidade. No início da temporada, o que eu pedi para as nossas equipas técnicas no Brasil e na Europa foi construir um elenco com zero risco de rebaixamento. Zero é impossível, mas com muito baixo risco. E esse é o objetivo número um, ter estabilidade. Nesta estabilidade, a gente vai crescer. O primeiro passo é classificar para uma competição regional. E depois vai ser vencer o título. A gente quer ser campeão. Para fazer esse caminho, temos que fazer muitas coisas. Por exemplo, desenvolver muito bem o futebol de base. Muito bem. Na Bahia, no Nordeste e no Brasil. E isso vai requerer investimentos em infraestrutura. Muitas coisas estão sendo feitas, mas não são rápidas. Para investir em infraestrutura precisa de anos. Na base, uma coisa muito simples de dizer, muito difícil de fazer, é que a gente quer jogar bom futebol. A velha história do jogo bonito. No futebol, como na vida, eu acho que há duas estratégias básicas: uma é estratégia de proposta, de propor, de ter a bola, de atacar, de tentar expressar um arte. E outra, mais prática, é defender, ficar atrás, procurar transição rápida, ser um time mais sólido, mas menos atrativo.
– A nossa aposta claramente é a primeira, sem discussão. No Bahia e em todos os nossos clubes. Por quê? Acreditamos nisso, é o que faz o futebol atrativo. Se todo mundo joga com 10 atrás… Se vocês acompanham alguns dos jogos do Manchester City nos últimos meses, às vezes é meio complicado, porque joga contra alguém que só está atrás. Se todos jogamos assim, o futebol acaba. Então, a nossa ideia é ganhar jogando bem. Não queremos ganhar sem jogar bom futebol. Na realidade, a minha experiência é assim: primeiro joga bem e depois ganha. A proposta é essa, construir uma equipe que vai ter talento e intensidade. Às vezes a gente confunde a questão da garra. Escutei muitas vezes falar garra, garra. Garra é o quê? Se é intensidade, sim. Se é contra-talento, não. O nosso objetivo não é ter uma equipe que tenha garra, competitividade, sem talento. É uma equipe com talento e intensidade.
Nessa linha do jogo que passa pela base, nesse trabalho de longo prazo que o senhor explicou, de como jogar, vocês têm um funcionário na empresa, um colaborador que talvez seja o maior treinador de todos os tempos. Pep Guardiola. Existe algum plano para um trabalho dele que seja mais descentralizado, que não seja só focado no Manchester City? Que, de repente, as metodologias que ele utiliza possam ser aplicadas nos outros 12 clubes?
– Poderia ser. Agora ele está concentrado no Manchester City, eu acho que vai estar concentrado no Manchester City. Mas esse trabalho já existe. Eu acho que qualquer um de vocês ficaria impressionado de ver como o Bahia já está integrado nos sistemas do grupo. Para eu dar um exemplo do que acontece: um treinador do Bahia está querendo treinar a defesa adiantada no caso da pressão direta ao defensor central. Ele vai num sistema, procura como é que se treina isso, tem uma análise técnica e tem um vídeo. Tem um vídeo que mostra como foi treinado no Manchester City ou em qualquer outro lugar. Todos os nossos campos de treinamento têm câmaras e têm drones. Então, isso existe já. E eu sentei com o Rogério, em Manchester, com um departamento que é muito grande, que faz esse análise, que dá a metodologia para ele… Não está na cabeça de um treinador. Está no sistema do grupo. Depois, cada treinador aplica do seu jeito.
Gostaria que você falasse do projeto Bora Bahêa Meu Bairro e os objetivos dele.
– É um desafio grande. No início, quando o pessoal me falava de problemas de nutrição, eu estava pensando em um menino que bebe Coca-Cola e come pizza, que é um problema de nutrição. Só depois descobri que era um outro tipo de problema. É um menino que não tem o que comer. E isso é inaceitável em geral, no Brasil, no século XXI, em qualquer lugar do mundo, né? Inaceitável. e, obviamente, inaceitável com os meninos que jogam futebol. Então, para nós, é uma prioridade absoluta. A gente não pode falar de treinar os meninos que não comem bem. E o programa Bora Bahêa Meu Bairro é parte disso. É um programa espetacular.
– Eu, na primeira vez que eu fui para Salvador, encontrei o prefeito, e a primeira coisa que ele disse foi: a gente tem campos, mas não temos a capacidade de gerenciar. E a gente disse, ok, a gente pega. Pegamos já vários, nove, vamos pegar muitos mais. Criamos uma comunidade naqueles campos, porque a comunidade ajuda muito. Ajuda os meninos a jogar futebol, mas ajuda os meninos a irem para um lugar, estar juntos, comer bem, ter educação e fazer coisas positivas. Para nós é um projeto fundamental para o Bahia, pelo impacto social que tem, mas também porque tem talento lá, tem talento de futebol, muito, mas tem que estar bem educado e tem que comer bem. São os básicos dos básicos.
No América do Sul o Mundial de Clubes tem um peso enorme, diferente da Europa. Agora, teremos um torneio ampliado, com mais clubes. Como o senhor vê viabilidade para esse Mundial de Clubes a longo prazo? Como superar também a questão do calendário, dos jogadores que querem redução do número de jogos?
– Vejo sim (viabilidade). É óbvio, é um pouco um desafiante, porque foi tudo feito em cima da hora. Eu estou em um comitê que tenta ajudar para isso, não é fácil comercializar um campeonato novo com pouco tempo. Mas as notícias das últimas semanas são positivas, de novos patrocinadores. Eu acho que vai dar certo. Eu acho que vai ser muito positivo para os clubes brasileiros. Primeiro, é espetacular que o Brasil terá quatro clubes no Mundial. A Inglaterra vai ter dois. E você está certo quando diz que a percepção do antigo Mundial dos Clubes é diferente na Europa do que no Brasil. Mas o novo não. O novo, os nossos jogadores, o nosso clube, o nosso treinador vai estar focado nele. Vai ser muito mais intenso. Não vai ter problema de jogadores estarem ou não estarem lá. Vai estar todo mundo. Vai ser muito mais intenso e vai dar oportunidade para os clubes brasileiros de lutar, de jogar contra outros times do mundo com um nível de intensidade maior. Sou otimista. E esse campeonato também é o primeiro ano. Talvez o primeiro ano não é tão sucedido, mas vai ter um outro, e outro, e outro. É o início de um caminho para uma competição que vai ser importante para todo mundo.
Nos últimas anos tem se intensificado a discussão sobre gramados sintéticos e gramados naturais. Qual a sua opinião?
– É uma questão técnica que eu aprendi no Barcelona e que foi uma coisa discutida quando a gente foi para a Inglaterra: a ideia técnica básica é que o menino tem que aprender quando muito jovem, com cinco ou seis anos, numa superfície perfeita. Se adquire melhor as habilidades básicas se a superfície é ótima. E no Barcelona já mudamos muitos campos de natural para artificial para ele ser perfeito. Não é uma questão econômica, é uma questão de onde o menino se desenvolve melhor. Chegando na Inglaterra, eu me encontrei confrontado com uma ideia totalmente diferente disso, que dizia: o menino vai jogar num campo ruim, em que chove e tal, então tem que treinar num campo ruim pra se acostumar. Não é assim. A ciência diz outra coisa.
– No Bahia, no nosso CT, estamos investindo em campos artificiais porque é a melhor maneira de aprender. Depois, no máximo nível, é um pouco polêmico se artificial ou não artificial. E eu não tenho uma opinião concreta, porque depende de cada país. Nos Estados Unidos, é normal jogar na grama artificial. Aqui no Brasil tem tudo. Na verdade, eu achava, 10 anos atrás, que essa polêmica ia acabar, porque a tecnologia ia oferecer um gramado artificial que fosse igual ao natural. Não aconteceu ainda.
Outro tema atual é a inteligência artificial. Como vê o uso dela no futebol e como é a utilização dela por parte do Grupo City?
– Na nossa casa se usa todos os dias. Mas às vezes a polêmica da inteligência artificial é um pouco forçada. A inteligência artificial é uma ferramenta para as pessoas usarem. Anos atrás se dizia que os meninos não podiam usar calculadoras porque tinha que treinar a cabeça deles. Ok, mas é bem mais rápido se a gente tem uma calculadora. É como andar em bicicleta em vez de caminhar. Nós usamos inteligência artificial em muitos lugares. Na parte técnica de futebol, fazemos simulações do jogo. Antes do jogo, jogamos o jogo um milhão de vezes com diferentes jogadores para ver o que acontece em um caso ou outro e aprender.
– Utilizamos a inteligência artificial para fazer uma previsão do valor futuro do jogador, que é muito complicado. Você tem um jogador de 18 anos e tem a evolução dele e usamos toda a estatística para tentar saber qual é o limite do crescimento do jogador. Só que, no final, tem sempre uma pessoa. E lá entram outras coisas, entra a personalidade do garoto… A inteligência artificial ajuda porque coloca a decisão num lugar menos amplo. A inteligência ajuda a não fazer erros monumentais. Mas depois disso são pessoas. E (a inteligência artificial) vai ser utilizada mais e mais, no futebol, na vida de todos nós. Eu não tenho medo de substituição da inteligência humana. É uma ajuda para a inteligência humana.