Esporte

Lembranças de um tempo em que a torcida baiana era a melhor do Brasil

Há 15 anos, quando a velha Fonte Nova fechou para só ressurgir como ‘arena’, em 2013, uma concreta marca de civilidade dos baianos se desprendeu das arquibancadas e, mesmo com o status de pedra preciosa, foi jogada, sem remorso, no fundo do Dique. A torcida mista era apenas um dos sinais de que rubro-negros e tricolores tinham uma relação saudável/louvável, mesmo ante a rivalidade constituída – tal qual um casal que divorciou e hoje divide bem as responsabilidades no cuidado da prole.

O prólogo dessa história pode ser contado a partir de diversas reportagens publicadas neste CORREIO, desde 1978, mas escolhi a de dois Ba-Vis – um em 1998 e outro em 99 – que têm personagens semelhantes, escolhidas pelos nossos repórteres, a fim de mostrar que até os parâmetros de cobertura acabavam se repetindo na missão de registrar algo previsível: eram festas de dar inveja. Inveja da forma – clima de paz e provocações saudáveis – e do conteúdo: o Baianão de 99, por exemplo, foi o torneio estadual com a maior média de público do país: 20.389 pessoas por jogo.

No clássico de 07 de fevereiro daquele ano, Bahia e Vitória empataram em 1×1, pelo Baianão, tendo 57 mil por testemunhas na Fonte, às vésperas do Carnaval. O título da reportagem principal indica que os jogadores foram quase coadjuvantes naquela folia geral: “Festa das torcidas foi um espetáculo à parte”.

O repórter José Raimundo Silveira abre o texto destacando o grande público, a atmosfera pré-jogo e o esquema de segurança, que não inspirava tanto cuidado quanto atualmente.

“Entre os milhares de torcedores presentes, mesclavam-se famosos e anônimos exaltados e comedidos. Todos com o mesmo brilho. As torcidas tricolor e rubro-negra foram as principais estrelas”, situa o texto.

“Na verdade, o Ba-Vi começou bem antes de a bola rolar, nas ruas e nos bares que circundam o estádio. Legiões de torcedores cantavam e festejavam a paixão pelos seus respectivos clubes. Ao contrário do que se observa em outras cidades brasileiras, os torcedores se misturavam animadamente sem a necessidade de a PM montar uma ‘operação de guerra’ para, por exemplo, criar acessos exclusivos para cada torcida”, menciona, antes de comparar com outros cenários:

Não faça guerra
A reportagem também cita a disposição das torcidas na antiga praça esportiva, indicando preocupações muitos distintas das de hoje. “Existe uma grande diversidade de torcedores que têm características variáveis, de acordo com a localização no estádio. Na arquibancada superior, onde se concentra a torcida do Vitória, por exemplo, é o verdadeiro point da paquera. As pessoas que ficam nesse lugar, além de torcer para o rubro-negro, preocupam-se em fazer o marketing pessoal para conseguir namoro. Já nos bancos embaixo da torcida Bamor ficam concentrados torcedores da chamada ‘velha guarda’”.

O casal formado pela rubro-negra Juliana e pelo tricolor Cristiano ocupava um lugar ainda mais romântico que o point da paquera. Contaram à reportagem que fazia 5 anos que iam aos Ba-Vis juntinhos, na torcida mista, e achavam aquilo fantástico. Longe de Cristiano enxergar problema em ir ao estádio com uma rival.

“Uma coisa não impede a outra. Apesar de ela torcer para esse ‘timinho’ e me fazer passar vergonha usando essa camisa, adoro ver o Ba-Vi ao lado dela”, provocou e derreteu-se o tricolor apaixonado. “Não tenho razão de discutir com ele por causa do futebol. São duas paixões diferentes e que não se misturam”, respondeu Juliana. 

Se às vésperas do Carnaval a folia foi pacífica, pouco mais de um ano antes, no aniversário de Salvador, os parabéns não deixaram de ir para outro lugar senão a arquibancada. Até porque aquele Ba-Vi de 0x0 teve goleada de público: mais de 84 mil.

Quem assina a reportagem relatando o embate é o jornalista Oscar Paris, que usa um título, mais uma vez, exaltando a antiga especialidade da casa: “Torcidas deram um show especial nas arquibancadas.”

E a atmosfera, os encontros entre torcedores no entorno, sem separação, mais uma vez é destacado com o status de idiossincrasia e bênção: “Nas ruas, nos bares ou na fila da bilheteria, o tom de provocação mútua se transformou em festa”.

Organizadas
E para quem acha que as uniformizadas eram vistas como problema, muito pelo contrário: eram justamente o elemento agregador, que faziam do bololô um bolo com uma bela cereja na cumeeira.

“Com casa cheia, o show é da torcida e as chamadas organizadas se encarregam de distribuir as armas para o duelo. Bamor, Leões da Fiel, Povão e Os Imbatíveis presenteiam a galera com balões e sacos de papel com as cores dos respectivos times. É munição suficiente para recepcionar os astros da bola”, escreve Paris na reportagem de 30 de março de 98.

Assim como na outra matéria, casais ‘rivais’ também entraram para dar a pitada de amor ao ambiente belicoso, citado na aspa anterior.

“Por ironia, é na divisa entre as torcidas que se concentra a personificação da paz e da democracia. Casais afinados no lar, mas inimigos quando o assunto é futebol, dividem as angústias e, lado a lado, curtem cada lance”, diz o repórter, antes de apresentar os soldados.

Rosival e Ivanilde frequentavam os estádios assim havia 12 anos, quando ainda eram noivos: ele rubro-negro convicto, ela tricolor fanática, de pintar o rosto. “Vamos a todos os jogos e nunca perdemos um Ba-Vi, seja na Fonte Nova ou no Barradão. A briga começa no estádio e termina em casa”, brincou Rosival.

Outro casal, formado pelo rubro-negro Cristóvão e a então noiva tricolor Nícia, também contavam serem habitués das mistas. “No final, a gente vai saber quem é o melhor”, dizia ela, questionada sobre o placar. O melhor eram eles mesmos, estejam hoje juntos ou não: todo o amor e torcida envolvidos no bom trato da prole e da vida.

Correio

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