Nada será como antes: 10 mudanças que a pandemia já provocou em sua vida
Desde o começo da pandemia do coronavírus, paira no ar um questionamento: como será o futuro, quando tudo isso passar. Mas, com o início das medidas de isolamento social, uma sensação ficou ainda mais forte: em alguns setores, as mudanças já começaram.
A interação social e a ocupação física dos espaços, por exemplo, são transformações que aconteceram desde já, como aponta o filósofo Leonardo da Hora, professor da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e pesquisador de filosofia social.
Um dos poucos parâmetros que se tem, hoje, é o da gripe espanhola. A pandemia no século passado, que teria matado até 50 milhões de pessoas em todo o mundo (fora a subnotificação), tem sido buscada agora como referência por pesquisadores de diferentes áreas para tentar compreender a situação atual.
Uma das consequências foi que, de fato, após a gripe espanhola, as estruturas de governo e atenção à saúde se modificaram. Foi em 1920, após a pandemia, que foi criado o Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP), órgão com atribuições mais nacionais que era uma reivindicação de muitos médicos, como explica o historiador Ricardo Augusto dos Santos, doutor em História e pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz no Rio de Janeiro.
No entanto, uma das mudanças mais relatadas pelos memorialistas da época é uma mudança acentuada dos costumes. Depois da gripe espanhola, as pessoas ficaram mais livres e soltas. “Nos anos seguintes à gripe, passou a acontecer mais carnaval de rua, blocos, manifestações. Mas fico olhando a pandemia hoje com bastante apreensão ainda porque acho que ainda é cedo para fazer comparações”, analisa.
Seu receio, explica, é que as cenas vistas durante a epidemia de gripe espanhola no Brasil voltem a ser realidade.
Entre 1918 e 1920, a população do Rio de Janeiro, então capital do Brasil, tinha entre 900 mil e um milhão de habitantes. Desse total, estima-se que 600 mil pessoas tenham ficado doentes. Entre os que contraíram a doença, pelo menos 15 mil teriam morrido.
“Mas esses números são ilusórios. Deve ter sido muito mais porque tinha cadáveres na rua, gente que enterrava em casa, em covas comuns. Nos últimos dias de outubro (de 1918), morreram 500 pessoas por dia. Se esse número é absurdo numa cidade de quase sete milhões (população do Rio hoje), imagine numa cidade de quase um milhão”.
Confira as mudanças e tendências
- Força do comércio digital
Um dos setores da economia que mais sofreu com a crise foi o varejo. Por muito tempo, parte do setor relutou em aderir ao e-commerce ou vinha se adaptando à transição de forma mais lenta, como aponta a futurista Alessandra Lippel, empresária e formada em futurismo pela Singularity University.
De acordo com ela, muitas empresas têm corrido contra o tempo agora. Muitas tentam investir em plataformas como ferramentas de delivery, e WhatsApp. Há iniciativas como a do Magazine Luiza, que criou o Parceiro Magalu, plataforma de venda para autônomos e pequenos comerciantes. Lançado no fim de março, permite criar uma loja virtual gratuita.
- As novas possibilidades com a educação à distância
Outra mudança foi o uso da educação à distância na rotina de crianças e adolescentes. Ainda que já fosse uma ferramenta utilizada, principalmente, por instituições de ensino superior, a educação à distância ainda tinha menos possibilidades com o público mais jovem.
Mesmo assim, o filósofo Leonardo da Hora, professor da Ufba, destaca que não se deve imaginar que a educação à distância vai acabar por substituir totalmente a educação presencial, inclusive com a figura do professor. “Pelo contrário, é justamente neste momento, em que muitos pais se deparam com a dificuldade de manter a rotina de estudos dos filhos em casa, que percebemos a importância do ensino presencial”, argumenta.
Já no ensino superior, ele enfatiza que, para existir educação de qualidade – seja ela online ou presencial – os investimentos em infraestrutura de pesquisa e ensino não devem deixar de existir. Isso inclui garantir o acesso dos alunos – de origens sociais diversas – a espaços adequados de estudo com conexão com internet.
- Revisão de valores de mundo
A sociedade já vive um momento de questionamento. Para o sociólogo Bruno Durães, professor do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), a situação atual tem favorecido questões sensíveis sobre o próprio lugar do indivíduo na sociedade, assim como sua relação com a natureza e o sistema de produção.
“O ser humano precisa se repensar. Não somos onipotentes e isso, na sociedade capitalista em que vivemos, passa pela lógica do querer, ter, ocupar postos de prestígio e comando”, analisa.
Para ele, há três elementos cruciais que devem ser analisados: o que somos então seres humanos e como pessoas no mundo; se vale a pena apenas ter coisas para acumular e se vale ter uma vida corrida.
- Uso de máscaras disseminado
Entre as principais formas de se proteger do coronavírus estão o uso de máscaras e o hábito de lavar as mãos. Para o historiador e pesquisador Ricardo Augusto dos Santos, da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz do Rio de Janeiro, esses novos hábitos devem incorporados de fato após à pandemia. As formas de uso hoje já indicam uma possível consolidação dessa mudança de comportamento.
No Japão, por exemplo, onde o uso de máscaras por pessoas com sintomas de gripe é comum, o costume se disseminou justamente após uma epidemia – a da Síndrome Respiratória Grave (SARS). O hábito de usar máscaras, também comum na China, foi apontado por especialistas chineses como tendo sido uma das razões para países asiáticos terem controlado a pandemia melhor do que países europeus.
“Aquela pandemia de dez anos atrás (H1N1) pode ter provocado uma leve mudança já no hábito de lavar as mãos, mas agora essa transformação veio para ficar”, acredita Ricardo.
- A proteção que vem da biotecnologia
O avanço da tecnologia costuma ser muito analisado pelos futuristas – os profissionais especializados em entender tendências do futuro. Segundo a futurista Alessandra Lippel, houve muita discussão sobre robótica e inteligência artificial e como isso poderia afetar os empregos das pessoas. No entanto, as pesquisas científicas atuais indicam um novo caminho.
Só para dar uma ideia desse movimento, é de grandes centros de pesquisa e de empresas de biotecnologia que têm vindo muitos dos estudos e testes para vacinas contra a Covid-19. A partir desse fortalecimento da área hoje, provavelmente será possível desenvolvê-la ainda mais para evitar novas epidemias como essa.
- O novo trabalho remoto
Desde março, categorias que não estavam acostumadas a vivenciar o trabalho remoto tiveram que se adaptar a propostas de home office. Alguns profissionais já liberais já eram acostumados a esse tipo de trabalho, mas a proposta de reduzir aglomerações fez com que o trabalho remoto se tornasse uma realidade mais comum.
Isso abre possibilidades para os momentos após a quarentena. No entanto, o sociólogo Bruno Durães, professor da UFRB, destaca que nem toda forma de trabalho vai migrar para o home office.
- O turismo de conforto e da sensação de estar em casa
Para uma cidade como Salvador, um dos maiores impactos veio justamente com o turismo. E, de fato, para especialistas na área, o setor será um dos que mais deve se transformar após a pandemia – ainda que as pessoas cheguem a levar até 18 meses, prazo de uma vacina, para voltar a viajar.
Uma das possibilidades, segundo empresário de turismo Erik Sadao, dono da agência Sapiens Travel, é pensar novos produtos.
Um dos focos podem ser as chamadas ‘comfort trips’, ou seja, os destinos que trazem a sensação de que o viajante está em casa, inclusive com o resgate de memórias afetivas. Outra tendência é o uso de empresas aéreas menores, com o fretamento de voos particulares.
- A renda básica universal
O problema da concentração de renda e da desigualdade social se tornou, para a futurista Alessandra Lippel, uma fratura exposta no Brasil. “Não dá para fingir que a gente não vê e isso tudo vai fazer aumentar a consciência das pessoas em relação à desigualdade”, pontua.
O que será feito a partir daí é que pode variar – há a possibilidade tanto de grandes medidas, como a taxação de grandes fortunas, até o cenário em que esses grandes movimentos não aconteçam. No entanto, segundo ela, um passo já foi dado: a aprovação da renda básica universal, uma pauta que acabou sendo consolidada com o auxílio emergencial, especialmente para trabalhadores informais.
“Esse cenário ajudou a acelerar a renda básica universal, que é necessária porque as pessoas não têm como trabalhar nesse momento”, explica.
- Cidadãos mais engajados com a política
O papel da política na vida das pessoas se torna mais evidente em momentos de crise, assim como a relação dos cidadãos com os governantes. Quem afirma isso é o filósofo Leonardo da Hora, professor de Filosofia da Ufba.
Segundo ele, a imagem dos servidores públicos, que nunca foi considerada muito positiva no Brasil, tem mudado. Para o professor, isso se deve justamente ao trabalho que os profissionais de saúde, principalmente os do Sistema Único de Saúde (SUS), têm feito na linha de frente de combate ao vírus.
“A necessidade de lidar com a pandemia de modo coletivamente ordenado apenas tornou isso mais claro aos nossos olhos. Só que o correto funcionamento das políticas públicas depende igualmente de nossa participação, de nosso interesse pelo que os políticos profissionais estão fazendo – e esse interesse não deve se limitar às épocas de eleição”, completa.
- Novas interações sociais
Sem aglomerações, a pandemia mudou até mesmo as relações sociais, inclusive as de amizade e de família. Até comemorações, como a Páscoa, tiveram parentes se reunindo apenas por videoconferência. Empresas de organização de festa e de buffet têm, inclusive, lançado opções de ‘kits de festa’ para até cinco pessoas, numa tentativa de contemplar os clientes que não podem receber convidados.
“A pandemia está gerando novas relações sociais, novas formas de comportamento dos indivíduos para com outros indivíduos e dos indivíduos com eles mesmos. Isso, sim, está sendo gestado, gerado e vivenciado”, afirma o professor Bruno Durães, da UFRB.
No entanto, para o professor, é preciso tomar cuidado com a mitificação ou supervalorização desse fenômeno. “Isso não necessariamente será totalmente bom ou totalmente ruim. Nenhuma visão total resolve a questão. Toda relação humana é cultural, social e diversa e a novidade tem elementos bons e ruins”, pontua. (Correio)