MP para regularizar terras pode mudar o mapa da Amazônia
Menos de um mês após a divulgação do maior índice de desmatamento na Amazônia dos últimos dez anos, o presidente Jair Bolsonaro assinou uma Medida Provisória que abre o caminho para que parte das áreas públicas desmatadas ilegalmente até dezembro de 2018 passe para as mãos dos desmatadores.
Assinada em 10 de dezembro de 2019, a Medida Provisória 910 permite que terras públicas desmatadas com até 2,5 mil hectares (o equivalente a 2,5 mil campos de futebol) se tornem propriedade de quem as ocupou irregularmente, desde que se cumpram alguns requisitos.
Críticos apelidaram a medida de “MP da grilagem” e dizem que premia desmatadores, além de estimular a destruição de novas áreas de floresta.
Já o governo, que chama a iniciativa de “MP da Regularização Fundiária”, diz que ela busca desburocratizar a concessão de títulos a agricultores “que produzem e ocupam terras da União de forma mansa e pacífica”.
O que são terras públicas não destinadas
A Medida Provisória tem como alvo terras públicas não destinadas, áreas que pertencem à União mas ainda não tiveram uma função definida, como, por exemplo, se tornarem parques nacionais ou reservas extrativistas.
A medida vale para todo o Brasil, mas terá maior impacto na Amazônia Legal, região que engloba os nove Estados onde há vegetação amazônica e que concentra as terras públicas não designadas no país.
Segundo o Ministério da Agricultura, na Amazônia, essas áreas somam cerca de 57 milhões de hectares, ou pouco mais do que o território da França.
A medida já entrou em vigor, mas precisa ser aprovada pelo Congresso em até 120 dias para não perder validade. A bancada ruralista apoia a iniciativa e está mobilizada em prol da aprovação.
Regularizações sucessivas
De toda a área desmatada na Amazônia entre agosto de 2018 e julho de 2019, 35% são terras públicas não destinadas, segundo uma análise do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam).
A prática de desmatar áreas públicas e fraudar documentos para simular a posse dos terrenos é conhecida como grilagem. O objetivo principal dos grileiros é vender as terras, lucrando com a valorização ocorrida após o desmatamento, uma vez que a área se torne apta para atividades agropecuárias. A pecuária é a atividade preferencial.
A grilagem é apontada como uma das maiores causas do desmatamento na Amazônia. A prática alimenta o mercado ilegal de terras na região, gerando uma corrida incessante por novas áreas de floresta.
Essas áreas são visadas por desmatadores na expectativa de que venham a ser regularizadas futuramente — o que de fato tem acontecido.
Em 2017, o então presidente Michel Temer assinou a Medida Provisória 759, que à época também foi apelidada de “MP da grilagem” por críticos. A iniciativa flexibilizava os critérios para a concessão de áreas públicas na Amazônia ocupadas até 2014. Tanto a MP 910, de Bolsonaro, quanto a MP 759, de Temer, são vistas como atualizações e desdobramentos de uma iniciativa de 2009 do governo Luiz Inácio Lula da Silva, a Medida Provisória 458, que deu origem ao Programa Terra Legal.
Na época, Lula também disse ter como objetivo regularizar posses de pequenos agricultores na Amazônia. No entanto, o livro “Dono é quem desmata: conexões entre grilagem e desmatamento no sudoeste paraense”, dos pesquisadores Mauricio Torres, Juan Doblas e Daniela Alarcon, apontou outros efeitos da iniciativa.
Segundo os autores, embora 90% do público-alvo do programa de fato ocupasse pequenas porções de terra, essas áreas correspondiam a apenas 19% do território coberto pela iniciativa, enquanto 63% das áreas ficariam nas mãos de 5,7% dos requerentes.
Dispensa de vistoria
Entre as condições definidas pela MP 910, de Bolsonaro, para que terras públicas sejam apropriadas por indivíduos estão:
- o reivindicante não pode ter outros imóveis rurais;
- a área deve estar inscrita no Cadastro Ambiental Rural (CAR) e ser georreferenciada (identificada por coordenadas de satélite);
- não pode haver multas ou embargos ambientais sobre a área, que tampouco pode ser objeto de disputas registradas na Ouvidoria Agrária Nacional;
- o reivindicante deve estar realizando atividades agropecuárias no território;
- o reivindicante não pode manter trabalhadores em condições análogas às de escravos.
A MP define que, para áreas que cumpram os requisitos e tenham até 15 módulos fiscais, o título será concedido sem a necessidade de vistoria.
Módulos fiscais são uma unidade de medida que varia por município. Nos municípios da Amazônia, os módulos fiscais costumam ter entre 70 e 110 hectares.
Em partes da Amazônia, portanto, a MP permitirá a concessão de títulos de áreas com até 1.650 hectares (1.650 campos de futebol) sem vistoria. Antes da MP, a dispensa de vistoria valia para áreas com até quatro módulos fiscais (no máximo 440 hectares).
Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil dizem que a dispensa da vistoria pode permitir que grandes áreas desmatadas ilegalmente sejam apossadas por indivíduos.
Isso porque a MP só proíbe a regularização de áreas que tenham sido objeto de multas ou embargos ambientais, e nem todas as violações ambientais são conhecidas e autuadas pelo poder público.
Dizem ainda que, sem vistoria, o governo não terá como checar se a área está realmente livre de trabalho escravo e se o reclamante de fato vive e trabalha no local.
Já o governo afirma que fará “análise dos documentos, cruzamento de dados e checagem com ferramentas” para confirmar se as informações são verídicas. A comprovação da ocupação da área, por exemplo, poderá ser feita com imagens de satélite. Caso a análise aponte discrepâncias, haverá vistoria.(G1)