O que é o juiz das garantias
O texto final do projeto conhecido como “pacote anticrime” sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro na terça (24), institui a figura do juiz das garantias, um magistrado que fica responsável por velar pelos direitos do cidadão durante o processo criminal e que não será o mesmo juiz a dar a sentença.
A inclusão do juiz das garantias foi feita durante a passagem do texto pelo Congresso, que também mudou cerca de 30% do projeto que foi proposto originalmente pelo ministro da Justiça Sergio Moro.
O fato de o presidente aprovar o projeto enviado pelo Congresso sem barrar a inclusão do juiz das garantias gerou críticas por parte de Moro, que havia pedido ao presidente para que fizesse um veto a esse trecho do texto.
“O Ministério da Justiça e Segurança Pública se posicionou pelo veto ao juiz de garantias, principalmente, porque não foi esclarecido como o instituto vai funcionar nas comarcas com apenas um juiz (40% do total); e também se valeria para processos pendentes e para os tribunais superiores, além de outros problemas”, disse Moro em nota divulgada na quarta-feira (25).
Bolsonaro, que vetou outros 25 pontos do projeto, respondeu por meio de sua página no Facebook, dizendo que não pode “sempre dizer não ao Parlamento”.
“Na elaboração de leis quem dá a última palavra sempre é o Congresso, ‘derrubando’ possíveis vetos. Não posso sempre dizer não ao Parlamento, pois estaria fechando as portas para qualquer entendimento”, escreveu o presidente.
“Só avançamos também porque recuamos em alguns pontos”, afirmou.
O que é o juiz das garantias
A figura do juiz das garantias não foi inventada agora: é um cargo que já estava em discussão no novo Código de Processo Penal (CPP), proposto pelo Senado em 2009. A proposta, que atualmente tramita na Câmara dos Deputados, veio para atualizar o CPP vigente hoje no país, que é de 1941.
Antes do projeto do novo CPP ser aprovado, no entanto, a figura do juiz das garantias foi incluída no pacote anticrime pelo deputado Marcelo Freixo (PSOL), que fez parte do grupo de trabalho que analisou as medidas propostas por Moro na Câmara dos Deputados.
Freixo disse que o juiz das garantias “é um avanço civilizatório” e “um aprimoramento da Justiça, por fortacelecer a imparcialidade e proteger os direitos dos cidadãos contra abusos, como os praticados pelo ex-juiz Moro”.
Freixo é um dos críticos da atuação de Moro, então juiz de primeiro grau, na operação Lava Jato. O deputado soma sua voz às críticas de alguns setores de que algumas atitudes de Moro — como o vazamento de conversas gravadas pela Polícia Federal e não relacionadas aos crimes investigados — foram abusos.
Atualmente, o Código de Processo Penal determina que o mesmo juiz que dá a sentença em um processo acompanhe a fase de investigação e produção de provas.
Com a mudança estabelecida pela nova redação da lei anticrime, a nova figura do juiz das garantias vai ficar responsável por decisões tomadas durante a investigação. Ele vai, por exemplo:
- decidir sobre a autorização ou não de escutas, de quebra de sigilo fiscal, de operações de busca e apreensão;
- requisitar documentos, laudos e informações ao delegado de polícia sobre o andamento da investigação;
- determinar o trancamento do inquérito quando não houver fundamentos suficientes para a investigação;
- julgar alguns tipos de habeas corpus;
- decidir sobre a aceitação de acordos de delação premiadas feitos durante a investigação
O juiz das garantias vai cuidar do processo até o momento em que a denúncia é formalmente apresentada à Justiça pelo Ministério Público. A partir daí, um outro juiz será responsável pelo caso, ouvindo testemunhas, analisando as provas e julgando os acusados, explica o professor de direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Rogério Cury, especialista em processo penal.
Quem defende a medida afirma que a ideia é que não haja confusão entre as funções de acusar e de julgar e que ela seja uma forma de garantir que os direitos dos cidadãos investigados não sofram abusos.
“É uma questão de neutralidade”, explica Edson Luz Knippel, professor de direito do Mackenzie. “Um juiz que, por exemplo, defere uma busca e apreensão, de certa forma já se posicionou em relação àquela prova. Um juiz que dá a sentença sem se envolver no processo vai ter uma visão muito mais imparcial”, afirma o criminalista à BBC News Brasil.
De acordo com artigos publicados pelo criminalista Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, existem fundamentalmente dois tipos de sistema penal: o acusatório e o inquisitório. No processo inquisitório, o juiz é responsável por levar provas ao processo. No processo acusatório, isso é responsabilidade das partes.
Segundo Coutinho, a Constituição de 1988 determina que o juiz não é produtor de provas e não pode haver confusão entre as funções de acusar e julgar. Portanto, escreve, existe a necessidade de atualizar a forma como o processo penal é conduzido no Brasil, já que o código de 1941 não se adequa à Constituição.
“É uma lei que tenta adaptar o processo ao sistema acusatório, para que você dê maior segurança para o cidadão e para que haja menos questionamentos em relação à possíveis desrespeitos de direitos”, afirma Rogério Cury, que também foi representante da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil) nas discussões sobre o pacote anticrime no Congresso.
Knippel concorda com essa visão. “O juiz das garantias prestigia a constituição Federal”, diz ele.
No entanto ele faz uma ressalva, dizendo que a implantação pode não ser tão simples. “Tenho dúvidas em relação às condições de implantação. Pode haver uma dificuldade em termos de criação de estrutura para isso”, diz Knippel.
Dificuldades
A questão prática é a principal dificuldade apontada por críticos da ideia de criação de uma nova figura da magistratura. Muitos afirmam que ela vai gerar mais custos à Justiça. A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), por exemplo, divulgou uma nota dizendo que vê a medida com preocupação “em virtude dos custos relacionados à sua implementação e operacionalização”.
Para Moro, os problemas têm a ver com questões estruturais. Ele disse que “ideia é bonita”, mas que um dos problemas é que 40% das comarcas do país tem apenas um juiz. “Como é que vai funcionar?” questionou, dizendo que é instalação é “inviável na prática”.
Moro também disse que “isso é muito bom na Europa”, mas “não cabe na estrutura do nosso judiciário”.
Para Rogério Cury, mesmo que haja necessidade de adaptações, é uma mudança extremamente positiva. “É uma figura que vem sendo aplicada em diversos outros países com muito sucesso.”
Ele diz também que a figura do juiz das garantias não vai engessar o processo, como dizem alguns críticos, já que as leis que serão aplicadas são as mesmas.
“Muito pelo contrário, ele vai dar até agilidade”, diz ele.
“Estamos vendo os tribunais superiores anulando grandes operações porque havia ilegalidade na interceptação telefônica, por exemplo. Hoje quando você questiona a obtenção de uma prova, tem que fazer isso diante do próprio juiz que a autorizou, o que acaba levando a questão às instâncias superiores. Com o juiz das garantias, o próprio juiz de primeiro grau que dá a sentença pode corrigir algum excesso que porventura tenha sido autorizado por um colega, você adianta instâncias.”
O que acontece agora?
A lei sancionada por Bolsonaro entra em vigor a partir de 23 de janeiro de 2020.
No entanto os 25 vetos feitos pelo presidente ainda podem ser derrubados pelo Congresso – os deputados e senadores têm 30 dias a partir da publicação da sanção presidencial para deliberar sobre os vetos em sessão conjunta. Se isso não acontecer nesse prazo, o assunto entra automaticamente na pauta do Congresso e passa a ser prioridade de votação sobre outras pautas até que os congressistas votem sobre ele.
Para que um veto seja derrubado, sua derrubada precisa ter maioria absoluta, ou seja, 257 votos entre os deputados e 41 entre os senadores.
Independentemente dos vetos, a passagem do processo por um juiz das garantias deve começar a partir da entrada em vigor da lei, em 23 de janeiro, já que o pacote não estabelece um período de transição para a Justiça se adaptar ao novo procedimento, com contratação de juízes por exemplo.
“Lei processual quando entra em vigor tem que ser aplicada imediatamente. Se não foi aplicada pode haver questionamento da legalidade dos processos”, explica Cury.
Como a lei não deixa claro como a redistribuição deverá ser feita, o poder Judiciário vai ter que regulamentar a questão nos próximos trinta dias.
“Para efetivar isso, seria importante que os processos todos fossem eletrônicos”, afirma Knippel. “Assim juízes poderiam ter acesso aos processos remotamente e haveria uma necessidade menor de criação de mais cargos.” Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 83% do processos iniciados em 2018 (data dos últimos dados disponíves) na Justiça Estadual foram feitos eletronicamente, com um índice de 82% na Justiça Federal.
Algumas entidades, como a AMB, já estão prometendo ir ao Supremo Tribunal Federal (STF) contra a medida — com o argumento de que uma mudança do tipo deveria ser feita pelo poder Judiciário, não pelo poder Legislativo. Portanto é provavél que o STF ainda venha a discutir a questão no próximo ano.
(BBC)