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Cobrança em universidades federais poderia gerar R$ 3,4 bi ao ano, estima estudo

A adoção de um sistema de cobrança sobre os estudantes que se formam nas faculdades federais similar ao modelo australiano – em que o graduado paga o curso ao longo da vida, ao atingir patamares mais altos de renda – poderia render ao menos R$ 3,4 bilhões ao ano para as universidades, segundo o pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) Paulo Meyer Nascimento.

Essa é sua estimativa mais conservadora: a depender do modo de cobrança e da evolução da renda dos novos profissionais, a receita anual poderia chegar até a R$ 7,1 bilhões (entenda os cálculos ao longo da reportagem). Hoje, cursar uma faculdade pública no Brasil é totalmente gratuito.

A proposta de instituir cobrança é uma medida impopular e já foi rechaçada pelo ministro da Educação Abraham Weintraub. Atualmente, o Supremo Tribunal Federal autoriza as universidades públicas a cobrarem apenas por cursos de especialização. Cobrar pela graduação só seria possível com a aprovação de uma mudança na Constituição pelo Congresso.

O modelo estudado por Nascimento, chamado de empréstimo com amortizações condicionado à renda (ECR), foi adotado nas universidades públicas da Austrália há três décadas, projetado pelo economista Bruce Chapman. Naquele momento, o ensino superior público do país era gratuito havia 15 anos, mas o governo decidiu voltar a cobrar. O ECR foi adotado para evitar o retorno do sistema de mensalidades, mais impopular.

Desde então, segundo um artigo recente de Chapman, variações desse sistema foram desenvolvidos em oito países – Nova Zelândia (1991), Inglaterra (1998), Hungria (2001), Etiópia (2002), Tailândia (2006), Coreia do Sul (2010), Holanda (2016) e Japão (2017).

No Reino Unido, o governo estipula o valor máximo da anuidade que as universidades podem cobrar e o aluno pode optar por contrair o empréstimo oficial ou simplesmente bancar o custo com recursos próprios, evitando assim acumular uma dívida a ser quitada após a formatura, a partir do momento em que sua renda atinja o equivalente a R$ 110 mil anuais.

Quitação

No ECR, o curso superior começa a ser pago após a formatura, quando o graduado ultrapassa um patamar mínimo de renda anual – no caso australiano, onde a renda média e o custo da graduação são mais altos que no Brasil, o limite de isenção equivale hoje a R$ 126 mil ao ano, valor que fica abaixo da média salarial da maioria das carreiras de nível superior daquele país. A partir disso, a cobrança aumenta conforme a renda sobe.

Outra característica desse sistema é que não há prazo para quitar a dívida e é garantido o perdão do saldo devedor após algumas décadas ou em casos de morte do beneficiado. Segundo Nascimento, isso serve como um “seguro” para o estudante mais pobre não ficar com medo de assumir uma dívida que talvez não consiga pagar depois.

Já quem tiver condições e preferir pode pagar a faculdade durante o curso e concluir os estudos sem ter acumulado uma dívida com o Estado a ser quitada após a formatura.

“Se o ensino superior abre oportunidades, nada mais justo que aqueles que efetivamente conseguem obter retorno financeiro retribuam parte do investimento do Estado na sua formação, inclusive ajudando a financiar quem entra no ensino superior anos mais tarde”, defende Nascimento.

“Esses recursos extras poderiam custear residência estudantil e bolsas para alunos mais pobres durante a faculdade”, exemplifica ainda.

Os defensores do ECR dizem que é a melhor forma de cobrança porque não cria uma “barreira de entrada” aos estudantes de menor renda, já que não há mensalidades durante o curso. Já os que se opõem à adoção do sistema no Brasil afirmam que sua aplicação seria complexa, enfrentaria muita resistência, sendo melhor buscar outras medidas que fortaleçam o ensino superior gratuito.

As projeções de Nascimento, que serão publicadas em nota técnica do Ipea, foram adiantadas à BBC News Brasil.

Para chegar a esses números, o pesquisador atribuiu aos graduados no ensino superior federal dívidas similares a dos beneficiários do Fies, programa do governo que oferece bolsas para acesso a universidades privadas. Depois, estipulou uma alíquota adicional ao Imposto de Renda, a ser cobrada até a quitação da dívida. Dessa forma, haveria uma faixa de isenção idêntica à do IR (renda anual de R$ 22.847,76 atualmente) e a cobrança subiria conforme o graduado atingisse rendas maiores, até a alíquota máxima de 13,75% para quem alcançar renda anual a partir de R$ 55.976,16.

O pagamento ocorreria ao longo de vários anos, mas Nascimento propõe que o governo adiante o repasse para as universidade, como ocorre na Austrália. Ao final da reportagem, há mais detalhes sobre os cálculos.

Recursos não seriam suficientes para bancar universidades

Um aporte anual entre R$ 3,4 bilhões e R$ 7,1 bilhões nem de longe seria suficiente para bancar integralmente o financiamento das instituições federais de ensino superior, cuja previsão de orçamento para 2019 é de R$ 65,7 bilhões.

Para Nascimento, porém, a cobrança traria fonte adicional importante, em um momento em que as universidades sofrem com cortes de verbas. Do orçamento total previsto para este ano, R$ 3,8 bilhões estão contingenciados (congelados e sob risco de corte permanente).

O orçamento do ensino superior federal é dividido em duas categorias principais – as despesas obrigatórias com pessoal ativo e aposentado, que consomem a maior parte dos recursos (R$ 56,7 bilhões previstos para 2019) e as despesas discricionárias, que bancam bolsas para alunos de menor renda, gastos com laboratórios, luz, água, reformas, realização de seminários, compra de equipamentos, entre outras. É nesse segundo grupo que recaem os cortes de orçamento – 42% dos R$ 9 bilhões previstos para esse ano estão congelados.

ECR será aplicado ao Fies

No momento, Nascimento está cedido pelo Ipea ao ministério da Educação para ajudar a implementar um sistema inspirado no australiano no Fies (Fundo de Financiamento Estudantil), programa que oferece empréstimos para estudantes de baixa renda cursarem universidade privadas. Ele espera que isso sirva como primeiro passo para no futuro implementar o modelo nas universidades públicas.

O atual governo, no entanto, refuta a ideia. O secretário de Educação Superior do Ministério da Educação (MEC), Arnaldo Lima, disse à BBC News Brasil que não há qualquer intenção na pasta de implementar cobranças em universidades federais. No caso do Fies, o objetivo é ter um sistema mais sustentável, que reduza a inadimplência.

“A gente entende que, quanto menor a taxa de inadimplência, maior a quantidade de vagas que podemos ofertar (nas universidades privadas, por meio do Fies). O ECR é crucial para isso”, defendeu Arnaldo Lima.

“Mas não existe nenhum estudo sobre cobrança de mensalidade em instituições públicas aqui. É muito importante deixar isso extremamente claro, até porque surgiram várias notícias falsas sobre (intenção de) privatização, cobrança de mensalidade (nas universidades federais)”, reforçou.

Segundo o Ministério da Economia, foram aplicados R$ 134 bilhões no Fies entre 2010 e 2018, dos quais uma parte será recuperada conforme os empréstimos forem pagos. Desse total, porém, o Tesouro já contabilizou como perdas por causa da inadimplência R$ 38,7 bilhões, entre 2010 e 2018.

Outros R$ 34,4 bilhões não serão recuperados porque se referem ao custo com subsídios (o governo cobra menos dos estudantes do que de fato custa o financiamento dos cursos).

Conforme explicou à reportagem a subsecretária de Avaliação de Gasto Direto do Ministério da Economia, Aumara Bastos de Souza, que também participa da elaboração do novo sistema para o Fies, a cobrança crescerá conforme a renda, mas não está previsto uma faixa de isenção. Já Nascimento considera que isso ainda pode ser revisto.

Uma lei de 2017 que prevê a adoção do ECR no Fies estabelece alíquota máxima de 20%. Já uma portaria posterior que trata do tema prevê uma fórmula matemática em que a alíquota vai variar de algo acima de 0% até 13%, sendo que os formados com renda de um salário mínimo pagariam 8% da renda para amortizar a dívida (R$ 79,84 por mês). Já os que ganham o teto do INSS (R$ 5.839,45), pagariam 12% (R$ 700,73).

Future-se

No ensino superior público, por enquanto, o foco do governo é implementar o Future-se – programa que pretende estimular parcerias com o setor privado para trazer mais recursos para as universidades, mas vem enfrentando resistência nas instituições federais.

Arnaldo Lima ressalta ainda que, para adotar o ECR, seria necessário aprovar uma alteração na Constituição para instituir cobrança no ensino público.

“Precisamos escolher nossas batalhas. E nossa batalha hoje é o Future-se, atrair mais receitas próprias, ter uma melhor gestão e aproximar (as universidades federais) do setor produtivo”, defendeu.

Apesar de descartar a adoção do ECR no ensino público pelo atual governo, o secretário elogia o sistema: “O ECR é um modelo muito inteligente porque ele vai pela linha de pague se puder, quando puder. Então o estudante não paga, e quando (vira) empregado começa a pagar retroativamente por um serviço que utilizou”, disse.

“Isso, ao meu ver, é uma forma de estabelecer uma justiça intergeracional. E acaba propiciando mais recursos para a educação, o que pode ajudar bastante a elevar as taxas brutas de matrícula do Brasil que ainda são baixas em relação a outros países”, reforçou.

‘Melhor aperfeiçoar o sistema gratuito’, defende pesquisadora

Defensor do sistema 100% gratuito, Romualdo Portela, professor da faculdade de Educação da USP e presidente da Associação Nacional de Política e Administração da Educação, considera que a proposta de instituir sistemas de cobrança se insere numa lógica “de desobrigação do Estado” no financiamento das universidades.

Ele teme que a adoção de um sistema do tipo acabe justificando a redução de repasses públicos para as instituições, fonte essencial para financiar pesquisa científica. Em vez de instituir sistema de cobrança, Portela sugere aumentar tributos sobre os segmentos de maior renda para garantir mais recursos para a educação pública.

“A resistência política (ao ECR) vai ser violentíssima para um retorno pequeno, algo como 10% do orçamento das universidades. Vamos gastar energia na reforma tributária, em ter políticas mais democratizadoras no ensino básico para permitir mais mobilidade social aos mais pobres”, defende.

A economista Bruna Cataldo, doutoranda da UFF (Universidade Federal Fluminense), vem estudando o financiamento de ensino superior com empréstimos contingentes à renda desde o mestrado. Segundo ela, as evidências internacionais indicam que o ECR é o melhor sistema de cobrança de ensino superior.

Ainda assim, Cataldo não defende a adoção do sistema no Brasil. Para ela, antes de se buscar uma reforma tão profunda no ensino público, seria melhor tentar melhorar o modelo de gratuidade. Na sua avaliação, é uma “decisão política” destinar mais recursos públicos para as universidades, seja remanejando o atual orçamento, seja criando novos impostos sobre grupos de maior renda.

Cataldo ressalta ainda que a criação de cotas para ampliar o acesso de negros e estudantes de baixa renda das escolas públicas foram uma medida bem sucedida para democratizar as universidades federais, reduzindo a necessidade de cobrança como instrumento de justiça social.

“A grande vantagem do sistema gratuito é ser um sistema que a gente já tem. Grandes reformas têm problemas de implementação e criam uma desorganização social num primeiro momento”, argumenta.

“O ECR é uma alternativa viável e bastante plausível socialmente, mas é preciso entender que a gratuidade não é um problema com desafios demais, enquanto o ECR é a solução simples para questões fiscais. Não é simples”, reforça.

Em resposta às críticas, Nascimento afirma que uma reforma tributária que aumente impostos sobre brasileiros de maior renda não é incompatível com a adoção do ECR.

“Direcionar receita de pagamentos de egressos (das universidades) ao próprio sistema de ensino superior me soa natural. Já a receita extra advinda de um eventual aumento de outros tributos que pegassem os mais ricos, não”, ressalta, lembrando que há outras áreas que atendem os mais pobres carentes de receitas como saneamento, saúde pública e educação básica.

O pesquisador ressalta ainda que, por mais que as cotas tenham reduzido a desigualdade social dentro das universidades, ainda há um grande contingente de pobres fora delas “que também paga os impostos que viabilizam a universidade gratuita para quem chegou lá”.

Apesar de discordar de Nascimento, Cataldo defende a importância do debate: “Discutir a cobrança não pode ser tabu. O Brasil só tem a ganhar ao falar sobre isso de forma propositiva: ou a gratuidade vai melhorar, ou a gente vai ter um novo sistema que vai resolver parte do nosso problema”, acredita.

Entenda como o ECR poderia gerar ao menos R$ 3,4 bilhões ao ano

Em suas projeções, Nascimento considerou que o total de formados nas instituições federais de educação superior em 2018 (156.918 pessoas) teria uma dívida com as universidades de R$ 7,6 bilhões. Para chegar a esse valor, ele atribuiu aos graduados no ano passado dívidas similares a dos estudantes que completaram cursos semelhantes com financiamento de 100% das mensalidades em universidades privadas pelo Fies. Esses débitos variam de R$ 30 mil a R$ 400 mil, ficando na média em R$ 50 mil.

Além disso, reajustou as dívidas em 25% – isso permitiria que os graduados com renda maior pagassem a mais para compensar o dinheiro que não será arrecadado dos que não quitarem sua dívida, devido à isenção pela renda mais baixa.

No lado da cobrança, Nascimento estipulou uma taxa que seria metade da alíquota do Imposto de Renda. Ou seja, quem tiver renda anual acima da faixa de isenção (R$ 22.847,76) até R$ 33.919,80 pagaria 3,5% para quitar a dívida, além do 7,5% de IR.

Já o que receber acima de R$ 55.976,16, que paga 27,5% de Imposto de Renda hoje, seria tributado em mais 13,75% para pagar o financiamento.

Nascimento usou dados do IBGE para trabalhadores com ensino superior para estimar as rendas que seriam alcançadas por esses graduados. O pesquisador fez várias simulaçõs, considerando cenários em que os graduados não teriam crescimento real (acima da inflação) da renda e também a possibilidade de ganhos maiores de remuneração ao longo da vida. Também considerou a possibilidade de a alíquota incidir sobre toda a renda, como na contribuição previdenciária, ou sobre a renda marginal, como no Imposto de Renda.

Por isso as projeções de arrecadação variam de R$ 3,4 bilhões a R$ 7,1 bilhões.

“Ninguém chegaria a pagar 100% do valor presente da dívida porque o desenho proposto atualiza as dívidas estudantis apenas pela inflação durante os anos do curso e enquanto a renda da pessoa permaneça dentro da faixa de isenção do imposto de renda”, explica.

“Mesmo nos cenários em que os rendimentos das pessoas permanecessem estagnados, as perdas por esse sistema seriam menores do que os atrasos nos pagamentos dos contratos do Fies atualmente em fase de amortização”, acrescenta.

Na média, as dívidas dos graduados seriam quitadas entre 19 e 30 anos. No entanto, a proposta de Nascimento é que o governo antecipe o repasse dessa arrecadação às universidades, por meio de empréstimos com organismos internacionais, realocação de recursos do Orçamento, ou captando recursos com a emissão de títulos públicos.

(BBC)

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