Quebra de decoro e por que ela é quase lenda no Brasil
Em 30 anos de atuação parlamentar, apesar de um verdadeiro show de denúncias de esquemas de corrupção envolvendo deputados e senadores, apenas 27 políticos acabaram cassados por quebra de decoro. O número é inferior a 10% das 287 denúncias formais recebidas nas duas casas do Congresso. A reportagem teve acesso, via Lei de Acesso à Informação, a todas as denúncias de quebra de decoro enviadas à Câmara dos Deputados e ao Senado desde a redemocratização e atestou que a maior parte das condenações aplicadas pelos Conselhos de Ética não envolve a perda do mandato, resultando em impunidade ou repreensões sem grandes efeitos práticos.
O termo decoro passou a fazer parte do cotidiano político, em especial quando se considera escândalos como o Petrolão e o Mensalão ou episódios como um ex-presidente da Câmara perder mandato poucos meses após conduzir sessão de processo de um impeachment presidencial. Apesar do termo ser recorrente em declarações dos mandatários, ao longo de três décadas, apenas 200 deputados federais e 93 senadores chegaram a ser formalmente denunciados e houve apenas 58 “condenações”. Diante dos números, é possível compreender um cenário que permite deputado trabalhar com tornozeleira eletrônica , senador condenado por corrupção voltar ao Senado após entrar em regime aberto e trocas de xingamentos ou cusparadas em meio ao Plenário .
O limite sobre o que um parlamentar pode ou não fazer no exercício legislativo está no Código de Ética e Decoro. Exigência do artigo 55 da Constituição Federal de 1988, não por acaso apelidada de “Cidadã”, o documento definiu que senadores, deputados e vereadores passassem a obedecer um rito mais ético, moral e de respeito ao decoro não apenas nas Casas em que atuam, mas na vida cotidiana durante o período em que exercem mandatos. As denúncias e julgamentos, porém, são avaliadas e conduzidas pela própria Casa.
Quem vigia os vigias?
A quebra de decoro é a única maneira legal de um parlamentar perder o seu cargo pela via política. Os limites impostos a um parlamentar no âmbito político só podem ser julgados por um tribunal do legislativo. Daí a criação do Conselho de Ética e Decoro, uma forma de sindicância para avaliar as denúncias contra deputados e senadores na Câmara e no Senado . A única outra forma de perda do mandato é por meio judiciário, quando a Justiça Eleitoral impede o prosseguimento do trabalho de um eleito por julgar ter havido irregularidades durante o período de eleições. Não por menos, cria-se na sociedade uma sensação de impunidade frente ao que poderia ser descrito como corporativismo parlamentar.
“As acusações, por diversas vezes, são minimizadas e adquirem um enquadramento que acaba protegido pela imunidade parlamentar”, destaca a advogada membro do Instituto de Direito Político e Eleitoral (IDPE), Fátima Miranda. Ela acrescenta que a lógica é assegurada pelo sistema de separação em três poderes. “Esse tipo de comportamento vicioso não é exclusividade do legislativo, pelo contrário, acaba ocorrendo em todos os poderes, bem como em órgãos de classe, em que pessoas são julgadas por seus pares”.
Presidente da Comissão de Estudos em Direito Político e Eleitoral do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP), Fernando Neisser destaca que, aos poucos, foi se permitindo que um poder colocasse freios e contrapesos em outro, mas defende que o ideal é que o legislativo siga sendo o responsável pela própria fiscalização de seus membros.
“Isso foi matizado com o tempo, criando essa noção de um poder fazendo certo controle sobre o outro, mas não um controle absoluto. Algumas questões são preservadas para que o próprio poder se fiscalize. Um magistrado pode mandar prender um parlamentar que cometeu um crime na esfera criminal; mas na questão política não seria correto”, avalia. Grande escudo para que o corporativismo ganhe força no Congresso é a certeza de que qualquer ação contra um colega deputado pode resultar em vulnerabilidade quanto a seu próprio mandato. “O parlamento se une para proteger as prerrogativas parlamentares. A ideia da imunidade parlamentar com relação a opiniões expressas é algo muito sagrado para eles. Por mais bárbaras que sejam as coisas ditas por um mandatário, votar no sentido de uma punição para isso significa flexibilizar uma prerrogativa. E é claro que quem julga, pensa em si próprio”, completa Neisser.
O julgamento pelo parlamento , entretanto, não descarta que o parlamentar seja julgado por crimes em outras esferas, como explica o mestre em Direito do Estado e professor de Direito Eleitoral da PUC-SP, Carlos Gonçalves Júnior. “O fato do legislador ser submetido ao julgamento de seus pares pela perda de mandato não inibe a possibilidade dele vir a ser processado civil e criminalmente. E nessas esferas, quem julga é o poder judiciário. Por se tratar de um parlamentar em mandato, o Supremo Tribunal Federal”.
Outros tempos, outros valores
Antes da Constituição de 1988, era rara a punição por quebra de decoro. Apenas um deputado perdeu mandato em quatro décadas. E o motivo, controverso, se distancia das atuais denúncias de corrupção e flerta com a tradicional lógica da moral e bons costumes. O escândalo em questão veio à tona em 1946, quando o deputado federal pelo estado da Guanabara/Rio de Janeiro, então Distrito Federal, Edmundo Barreto Pinto estampou as páginas da Revista Cruzeiro para falar sobre política e o momento da Nação. A questão é que o fez apenas de smoking e cueca.
Chocado, o parlamento entendeu que as fotografias “polêmicas” seriam um desrespeito ao cargo ocupado pelo parlamentar. Três anos depois, em maio de 1949, Barreto Pinto, um dos fundadores do PTB, acabou submetido à votação secreta na casa e entrou para a história como o primeiro parlamentar cassado por quebra de decoro no País. Com a advento da ditadura militar, políticos perderam mandatos, mas por motivos outros. No regime democrático, apenas em 1991 um outro deputado perderia o cargo, dessa vez, Jabes Rabelo (PTB-RO), condenado por envolvimento com tráfico de drogas.
De acordo com dados obtidos junto ao Congresso Nacional, entre 1989 e 2019, somando as duas casas, houve um total de 287 requerimentos de quebra de decoro recebidas, sendo 198 referentes a deputados federais e 89 a senadores. Como em uma mesma denúncia podem ser citados mais de um deputado ou senador, o número de denunciados é maior que o de denúncias: 200 na Câmara e 93 no Senado.
Na Câmara dos Deputados, os anos de 1994, 2005 e 2006 se destacam como os que mais tiveram denúncias. A explicação está no contexto político, já que se referem a ocasiões em que se apresentaram a CPI do Orçamento, o escândalo do Mensalão e a CPI dos Sanguessugas, respectivamente. “O aumento tem a ver com um certo despertar da opinião pública e dos próprios parlamentares para a utilidade da acusação no meio público. Descobriu-se que era possível explorar isso, havendo ou não motivo”, avalia o pesquisador do IASP Fernando Neisser. A partir de então, parlamentares passaram a usar as (ameaças de) denúncias como atos políticos contra opositores.
“O país, de uma forma geral, vive nos últimos anos uma onda de ‘denuncismo’, que por vezes acaba incentivando a abertura de processos de natureza ética. O parlamento, a partir de 2005, teve consciência de seu poder investigativo e punitivo, o que, se de um lado, é positivo para separar os bons dos maus parlamentares; de outro, pode acarretar injustiças, diante de denúncias vazias, fundamentadas apenas em disputas políticas”, destaca a advogada do IDPE Fátima Miranda.
O denunciante – seja ele um partido ou um parlamentar – aparece mais na mídia e, assim, passa a ser conhecido do público, o que, segundo Carlos Gonçalves Júnior, também explica o aumento de denúncias nos últimos anos. “Com o advento da publicidade dos conflitos políticos com a TV Câmara, TV Senado e TV Justiça, a própria classe política viu na função de ser fiscal da ética e moral um caminho populista. O denunciante, muitas vezes, acaba sendo visto como um paladino da justiça. Não deixa de ser um jogo político”.
Mesmo com o joguete midiático, as condenações no Conselho de Ética e Decoro são baixas: 58. Perda de mandato no Plenário são 27, sendo 24 na Câmara e três no Senado.
Fonte: iG