Ferries correm risco de afundar e contaminar mangue na Baía de Aratu
Diante dos manguezais que contornam a Baía de Aratu, duas figuras chamam a atenção. Cobertos por ferrugem, com dezenas de buracos no casco e atracados na Marina de Aratu, as embarcações Monte Serrat e o Ipuaçu – que já transportaram milhares de passageiros no sistema ferryboat – apodrecem aos olhos de quem passa por ali.
Não se trata apenas de vê-los se transformando em sucata. Hoje, 15 anos depois de o mais velho ter aportado no local pela primeira vez, as embarcações correm o risco de naufragar lá mesmo.
(Foto: Evandro Veiga/CORREIO)
Para especialistas, é difícil até mensurar os danos ambientais para o ecossistema da região, caso os dois barcos, que já foram até leiloados pela Agerba, no segundo semestre do ano passado, afundem na Baía. Para quem trabalha diretamente com os ferries, o medo do naufrágio é constante.
Em dezembro, durante uma falta de energia, a bomba que lança a água do mar – que entra pelos inúmeros buracos dos cascos – para fora das embarcações parou de funcionar. Foram 20 horas sem luz. Ou seja: a água entrava e não saía. Se a falta de energia durasse mais quatro horas, segundo fontes ouvidas pela reportagem, os ferries poderiam ter afundado naquele dia.
O CORREIO entrou no Monte Serrat e no Ipuaçu que foram leiloados no segundo semestre do ano passado pela Agência Estadual de Regulação de Serviços Públicos de Energia, Transportes e Comunicações da Bahia (Agerba). Apesar de terem mudado de dono e agora pertencerem a uma empresa privada, a situação não melhorou – aliás, piorou. Dentro dos ferries, há lixo acumulado, cadeiras antigas amontoadas e galões de óleo lubrificante sem proteção.
Navio de ‘durepóxi’
Nos últimos anos, o temor foi acalmado não por grandes reformas em estaleiros, mas por um elemento que muita gente tem dentro de casa: a resina epóxi. Foi com ela que os furos no casco dos ferries chegaram a ser cobertos. “Ou seja, com o chamado durepóxi mesmo”, esclarece, ao CORREIO, um dos engenheiros que denunciou a situação das embarcações, mas não quis se identificar.
O Ipuaçu está em condições melhores, ainda que dominado pela ferrugem. O Monte Serrat, por sua vez, parece mais agredido pelo tempo. No andar onde ficavam os passageiros, o piso já cedeu em alguns pontos. O encarregado Marcelo Timóteo, 61 anos, que foi designado para cuidar dos ferries há 11 anos, chegou a sofrer um acidente, certa vez.
“Fui buscar aquele balde ali, que está onde ficava o banheiro. Quando pisei, o buraco abriu. Tive que me segurar e fiquei pendurado”, conta o encarregado, apontando para um buraco de aproximadamente 40 centímetros de diâmetro no andar acima.
Agora, ele explica, ninguém mais pode subir lá. Mas esse acidente não foi o único. Enquanto levava a equipe do CORREIO até um outro buraco que se abrira no piso onde ficavam os carros, Marcelo viu o chão abrir devido a uma passada mais forte.
No meio do caminho, mais um buraco se formara. Do lado de fora, ele aponta para uma espécie de ‘faixa’ marrom no casco do navio: “Toda essa linha está comprometida”, alerta.
Manguezal
Para quem frequenta a Baía de Aratu, a situação dos ferries assusta. E para quem conhece a Baía, o medo é ainda mais justificado. “Estão esperando acontecer um acidente ecológico. Aqui é uma bacia estreita, como a Bacia de Guanabara. Por isso, é difícil haver troca de água do oceano”, completa o engenheiro que fez a denúncia.
É difícil prever por quanto tempo o óleo e outras substâncias se espalhariam pelo mar, justamente porque não se sabe quantos litros dos líquidos existem nos navios.
“É um óleo mais denso. Uma embarcação como essa tem capacidade para 120 mil litros de óleo e derivados. Só para dar uma ideia, num posto de gasolina de marinas, tem 10 mil litros. Esse lugar é manguezal, uma área de proteção ambiental regida por lei. Manguezal é o ecossistema mais rico que você tem”, pondera um gestor ambiental, que também não quis se identificar.
Leilão
A Marina já abrigou outros ferries antes de serem leiloados. O primeiro a chegar foi o Gal Costa, em 2001. Lá ficou por anos, até ser vendido em 2010. Em 2004, o Monte Serrat aportou para fazer companhia, mas, diferente do Gal Costa, não saiu mais. O Ipuaçu chegou dez anos depois, em 2014 – por isso, inclusive, está em condições melhores que o primeiro.
As informações foram confirmadas pelo sócio-diretor da Marina de Aratu, Antônio Barreto, que foi procurado pelo CORREIO.
“Ficaram aqui os ferries, se acabando, enferrujados, com risco de naufrágio, até que o governo conseguiu o leilão. Notifiquei Ministério Público, Capitania dos Portos, mas esse negócio está até hoje aqui e foi ficando”, contou, referindo-se à venda.
O leilão do Monte Serrat e do Ipuaçu foi lançado em agosto do ano passado e homologado no dia 23 de outubro de 2018. Quem arrematou os dois barcos, por R$ 110 mil, foi a empresa SS Comércio de Metais Ltda.
Antes disso, era o governo do estado quem pagava o aluguel na Marina – o último contrato ficou em torno de R$ 12 mil por mês pela estadia dos dois. Ainda de acordo com Barreto, o episódio da falta de luz em dezembro não foi o primeiro. “Já faltou energia várias vezes, mas essa foi a mais longa. Toda vez que falta, eles enchem de água”, disse.
À Marina, o dono da empresa teria chegado a dizer que pretendia devolver os ferries para a Agerba, por não poder retirá-los do local. Ele diz, ainda, que a empresa não está pagando aluguel, que inclui a taxa de energia. Mesmo assim, a responsabilidade sobre os barcos é do novo proprietário.
O governo do estado informou que o edital não permite a devolução dos ferries e que o prazo para retirada dos bens era de 30 dias corridos, contados a partir do primeiro dia útil após o leilão. Como o arrematante não retirou as embarcações da Marina dentro do prazo, o Governo diz que adota medidas legais para resolver o problema: após a notificação, que não foi respondida, instaurou processo de apuração de ilícito. O processo está em tramitação. Ao final, a empresa poderá ser multada, ter suspenso o direito de licitar com o Estado, e ser responsabilizado por perdas e danos decorrentes das infrações cometidas.
Segundo Barreto, um dos ferries – o Ipuaçu – suportaria a viagem para sair da Marina. Já o Monte Serrat só conseguiria sair com alguma preparação específica. “Alguns anos atrás, a Petrobras veio aqui e fez o serviço de retirada de óleo, mas toda embarcação tem muito resíduo de óleo. Se vierem a naufragar, com certeza vai contaminar o ambiente”.
O empresário ainda calcula os prejuízos diretos que teria, caso os navios afundem enquanto estão atracados no local: interdição do píer e contaminação do ecossistema no entorno da marina. “É um prejuízo total”, assegura ele, que mantém um funcionário específico para cuidar dos ferries.
Responsabilidade
O Ibama, que lidera o Plano de Área da Baía de Aratu, já está sabendo do caso desde o ano passado e fez uma vistoria nas embarcações no dia 24 de janeiro. Na visita, foi constatado que havia realmente óleo no local. De acordo com o analista ambiental do órgão, Daniel Dantas, o proprietário da empresa será notificado para fazer a retirada do óleo dos navios.
“Para o meio ambiente, o preocupante é a retirada do óleo, para que não venha a ter uma poluição. Vamos entrar contato com o dono e ele vai ter um prazo, que vai depender da empresa que ele vai contratar. Queremos tomar medidas em conjunto”, explicou, por telefone, ao CORREIO.
Segundo ele, se o proprietário da empresa não retirar a substância, pode ser autuado. As medidas seguintes serão definidas pela procuradoria do órgão federal.
O filho do dono da SS Metais, que estava na Marina no dia em que o CORREIO visitou os ferries, disse que não poderia se pronunciar. Ainda contou, porém, que a Capitania dos Portos não tinha autorizado a remoção das embarcações. O pai, identificado como Paulo, por telefone, disse que não falaria com a reportagem.
Em nota, a Capitania dos Portos informou que não tinha recebido solicitação para remoção ou movimentação dos cascos.
Condição de sair
Para a saída dos ferries da Marina, é preciso que a Marinha confirme que os dois têm condição de navegabilidade. Se foram retirados sem autorização, o proprietário pode sofrer sanções, de acordo com o advogado Zilan Costa e Silva, especialista em direito marítimo.
“Ele vai responder às normas de tráfego hidroviário, ao Tribunal Marítimo. Pode ter multa, retirada de habilitação. Mas, normalmente, ninguém que trabalha na área vai tirar sem autorização. Todo mundo é muito correto porque, na área marítima, tudo envolve milhões (de reais)”, disse.
Ao CORREIO, o Ministério Público do Estado (MP-BA) confirmou que, em 2016, a 3ª Promotoria de Justiça de Simões Filho recebeu um ofício que falava sobre o problema dos ferries, mas o processo foi arquivado porque os fatos já estavam na 2ª Vara do Trabalho de Simões Filho e, até então, não havia dano ambiental.
Em nota, a promotora Patrícia dos Santos Ramos afirmou que, na representação, a Marina informava a existência de uma decisão judicial para retirada dos ferries. “Em havendo lesão ou potencial dano ambiental, o Ministério Público Estadual adotará as providências pertinentes”, completa o órgão.
Procurado pela reportagem, o Instituto Estadual do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) disse não ter sido notificado sobre o caso. “Qualquer manifestação do órgão se passa após ser notificado”, informou.
Retirada do óleo deve ser prioridade, diz pesquisadora
Uma das prioridades, nesse momento, deve ser mesmo a retirada do óleo, na opinião da professora Tânia Tavares, do Instituto de Química da Universidade Federal da Bahia (Ufba). Isso porque, além da possibilidade de derramamento da substância no mar, existe o perigo de incêndio.
“Além do próprio óleo, que pode asfixiar peixes, existem substâncias que vão ficar presas no ambiente e podem ser absorvidas pelos animais, como hidrocarbonetos policíclicos aromáticos e metais pesados. Essas substâncias podem ser bioacumuladas pela fauna e eventualmente passar para o ser humano que venha a comer”, explica ela, que é coordenadora do Laboratório de Química Analítica Ambiental (Laquam) e o Núcleo Interdisciplinar do Meio Ambiente (Nima) da Ufba.
Entre os principais riscos, está a diminuição da fauna e da flora locais. Há a possibilidade de acontecer um aumento do teor de metais na fauna e algumas dessas substâncias podem ser tóxicas.
No entanto, a partir do momento em que os navios passam por uma limpeza, caso afundem, existem chances até de favorecer o aparecimento de fauna marinha.
“Existem casos de navios que viraram até pesqueiros. O problema é que a Baía de Aratu não é muito profunda. Se o navio afunda, ele pode atrapalhar a navegação e, a depender, vira um pesqueiro, mas atrapalhando a navegação”.
No entanto, ainda que a circulação da água do mar na Baía de Aratu seja mais lenta, a Baía de Todos os Santos, onde ela está inserida, consegue se renovar por completo em até três dias. “Então, deve demorar (para circular), mas estamos falando de dias, não de meses e anos”.
Embarcação parada pode sofrer corrosão
Uma embarcação que fica anos parada pode sofrer os mesmos problemas que um automóvel sem uso. A analogia é usada pelo engenheiro Sílvio Melo, professor do curso de Engenharia Naval da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), para explicar como ocorre a deterioração de um navio como os ferries Monte Serrat e Ipuaçu.
Assim como pode acontecer com um carro, o sistema de óleo lubrificante pode vazar por falta de manutenção. Só que, em um navio, a água do mar acaba se misturado ao óleo, que não pode ser despejado novamente ao mar.
“As pessoas não retiram esse óleo e isso começa a prejudicar a estrutura interna. Ela começa a perder as proteções para evitar que o sistema tenha corrosão”, diz o professor.
Além disso, nas embarcações, há um efeito adicional: a água, que é um meio extremamente corrosivo. Se não houver cuidado adequado, os problemas – que já aconteceriam – podem ser ampliados.
Um dos riscos é a hipótese de a embarcação afundar totalmente. Se o barco afundar em um local em que a profundidade é menor do que a parte funda do casco, a dor de cabeça é menor. “O problema é que ela pode afundar por completo e, se tiver óleo dentro, vai causar danos ambientais”, pondera.
Para que uma embarcação que está há muito tempo parada possa navegar, é preciso fazer uma fiscalização antes. Essa análise deve comprovar que o navio tem condições de navegabilidade – ou seja, tem que ter estabilidade e flutuabilidade.
“Existe uma maneira cara de transportar, que é colocar em cima de uma barcaça de transportes. É a maneira mais segura de transportes e é mais comum no Sudeste. A opção mais barata é rebocar, mas isso só é possível com condições de flutuabilidade e equilíbrio. Tem que ter equilíbrio para, caso pegue um mar mas agitado, ela não vire e afunde”. (Correio)