Como usar brincadeiras para ensinar habilidades essenciais a crianças
Pensar antes de agir, planejar e traçar objetivos, focar a atenção, ser flexível e controlar as emoções são habilidades consideradas essenciais na vida adulta, e pesquisas científicas mostram que elas devem ser ensinadas desde cedo.
Em Harvard, o Center on the Developing Child, que estuda desenvolvimento infantil, preparou um guia para ensinar pais, professores e cuidadores a estimular, em crianças de todas as idades, essas que são chamadas de funções executivas – ou de “habilidades para a vida”.
“São habilidades para a vida porque são importantes para qualquer emprego, para buscar objetivos, para ser pai e mãe ou para cumprir múltiplas tarefas simultaneamente, por exemplo”, diz à BBC Brasil o médico Jack Shonkoff, diretor do centro de Harvard. “Não são conceitos novos, mas com o avanço da neurociência passamos a entender como eles impactam o desenvolvimento.”
O centro equipara as funções executivas a um sistema de controle de tráfego aéreo, que gerencia diversas informações ao mesmo tempo e tem de tomar decisões com base nelas.
A ausência de funções executivas bem desenvolvidas resulta em adultos menos produtivos, menos hábeis para o trabalho em equipe, com piores autocontrole e traquejo social.
Shonkoff destaca que essas funções se desenvolvem desde a infância até o início da vida adulta, mas é crucial formar uma base desde os primeiros meses de vida da criança, porque, quanto mais essas habilidades forem praticadas, melhores elas serão. “Sem essa base, será mais difícil aprender mais adiante.”
O desenvolvimento de funções executivas também pode ajudar as crianças a entender suas emoções e aprender a controlá-las – um auxílio importante para pais contornarem problemas comportamentais ou disciplinares.
‘Todos pagamos o preço’
O Center on the Developing Child destaca que, quanto mais crianças desenvolverem esse tipo de habilidade, melhor será para todo o mundo.
“Quando nos asseguramos de que as crianças tenham sólidas bases (socioemocionais), toda a sociedade se beneficia”, agrega Shonkoff. “Porque todos pagamos um preço quando há adultos com baixo controle de seus impulsos ou que não sejam bons pais.”
Pais e cuidadores têm um papel crucial, porque as funções executivas não se desenvolvem automaticamente, ao contrário de andar ou falar – que a criança aprende só de observar os adultos. Ela precisa de mentores que as ensinem a controlar seus impulsos ou a seguir regras – e que se assegurem de que o ambiente seja adequado.
“Em ambientes imprevisíveis, instáveis e inseguros para as crianças, é mais difícil fomentar habilidades executivas, porque o estresse tóxico impede o desenvolvimento de circuitos no cérebro”, explica Shonkoff.
Por isso, um dos focos do centro de Harvard é estudar formas de intervir de modo eficaz em lares de pais excessivamente imprevisíveis, violentos, com histórico de vício em drogas ou com questões de saúde mental – e que, por isso, podem não conseguir criar um ambiente para que seus filhos as aprendam, gerando um círculo vicioso.
“Programas de combate à pobreza muitas vezes são ineficientes quando ignoram (o estado socioemocional) dos pais ou apenas lhes dão conselhos como ‘leia para seus filhos'”, prossegue o médico. “É preciso buscar novas abordagens, que ajudem os pais a mudar suas vidas e a quebrar esse ciclo.”
Shonkoff destaca que todas as crianças nascem com o potencial de desenvolver essas habilidades, e cabe aos contextos onde ela está inserida – casa, escola e comunidade – estimulá-las para tal.
A seguir, dicas do Center on the Developing Child para fomentar isso em bebês, crianças pequenas, crianças maiores e adolescentes:
6 a 18 meses de idade
Veja algumas brincadeiras que estimulam a focar a atenção, usar a memória operacional (importante para a compreensão da linguagem, o raciocínio e o aprendizado) e praticar autocontrole. É importante, porém, que os adultos identifiquem os focos de interesse dos bebês e deixem que estes determinem a duração da brincadeira:
– Brincar de “esconde/achou!” ajuda a exercitar a memória, ao desafiar o bebê a lembrar quem está escondido e a esperar que a pessoa se revele.
– Esconda um brinquedo sob um pano e peça ao bebê que o procure; aumente o desafio à medida que ele identifique os objetos. Ao lembrar a mudança de lugar do brinquedo, ele exercita a memória. Crianças maiores vão se divertir se escondendo e escutando o adulto enquanto ele a procura. Uma variação dessas brincadeiras é esconder um objeto sob um de três copos virados para baixo e pedir que a criança adivinhe em qual ele está.
– Jogos de imitação divertem e desafiam o bebê a acompanhar as ações dos adultos, lembrá-las e esperar sua vez de repeti-las. Podem ser desde repetir gestos ou ordenar os brinquedos de certo modo (por exemplo, empilhar blocos ou colocar animais dentro de um cercadinho), para depois pedir ao bebê que repita.
– Nomear em voz alta os objetos que chamam a atenção do bebê vai prolongar o interesse dos pequenos pelos objetos, praticando o foco e, posteriormente, a memória.
– Conversas em vários idiomas devem ser praticadas com a criança desde seus primeiros meses. “Quanto mais cedo isso começar, mais ela será capaz de aprender o idioma”, explica Shonkoff. “A princípio, o cérebro delas terá de se esforçar um pouco mais, mas o resultado disso serão funções executivas mais bem desenvolvidas.”
18 a 36 meses
É uma etapa de rápido desenvolvimento da linguagem, que por sua vez ajuda no desenvolvimento de funções executivas ao se relacionar a pensamentos e ações e ao cumprimento de regras:
– Ofereça o máximo de oportunidades para o bebê exercitar novas habilidades, como brincar de jogar e pegar bola, pular, correr para cima e para baixo em uma ladeira. Estipule regras simples, como correr até uma linha de chegada
– Narrar a brincadeira da criança ajuda-a a entender como a linguagem descreve suas ações. À medida que a criança cresce, é possível lançar perguntas: “O que você vai fazer a seguir?” ou “Quero ver você colocar a bola dentro do pote. Quais as formas de se fazer isso?”
– Pedir à criança que separe objetos por tamanho, forma ou cor, por exemplo, exige da criança entender as regras da atividade, memorizá-la e segui-la.
– É crucial, desde essa etapa, conversar sobre sentimentos, explicando à criança o que ela está sentindo: “Estou vendo que você está muito chateada!”. Isso é muito importante para o desenvolvimento emocional infantil, sobretudo em momentos de adversidade, diz Shonkoff. “As crianças sentem medo, tristeza ou alegria sem nem sempre entender de onde vem isso. Quando explicamos os sentimentos, ajudamos a criar crianças mais resilientes e que aprendem a gerenciar suas emoções.”
– A brincadeira imaginária também se fortalece nessa fase. Vale brincar de imitar adultos com objetos do dia a dia (panelas, vassouras) ou de imaginar, deixando a criança determinar qual “papel” ela e o adulto devem interpretar.
3 a 5 anos
Essa é uma das fases de maior desenvolvimento das funções executivas. O objetivo principal é que elas consigam, aos poucos e em seu ritmo, ir dependendo menos da regulação dos adultos, então é importante ir dando autonomia sempre que possível.
– Brincar de imaginar ajuda a criança a desenvolver pensamentos complexos e a interpretar um papel – por exemplo recriando uma ida ao médico, montando sua peça de teatro ou contando uma história. Nessa etapa elas começam a conseguir brincar em grupo, cooperando entre si, algo importante na autorregulação.
– Estimule a criança a contar histórias, que vão crescendo em complexidade à medida que ela crescer – estimulando a memória e o uso de informações de modo coerente. Ajude-as a criar suas próprias histórias e peças.
– Brincadeiras de movimento com música, como “estátua” – tornando as tarefas mais difíceis à medida que a criança vencer os obstáculos -, ajudam a ensinar a sincronizar palavras, ações e ritmos.
– Já dá para estimular atividades silenciosas e de foco, como equilibrar-se em uma trave ou meio-fio da calçada, exercitar uma pose de ioga, jogar bingo ou fazer jogos de memória e quebra-cabeças mais complexos. Todos exercitam a flexibilidade cognitiva.
– Cozinhar, dando orientações e mensurações às crianças, ajuda a ensiná-las e esperar e compreender instruções complexas, além de desenvolver a memória e o foco.
5 a 7 anos
Jogos com regras e desafios crescentes permitem às crianças exercitar habilidades como atenção, foco, memória operacional, cooperação e autocontrole. Sugira jogos que sejam desafiadores, mas não em excesso, e esteja pronto para ajudar a negociar eventuais conflitos que surjam durante a atividade – por exemplo, usando cara ou coroa para designar de quem é a vez de jogar.
– Estimule jogos de tabuleiro, de cartas e de estratégia. Algumas sugestões: Uno, Mico, Duvido (também chamado de Desconfio), Batalha Naval ou Damas.
– Dança das cadeiras, “estátua”, queimada, batata-quente, músicas de repetição em que cada jogador acrescenta uma frase nova e atividades semelhantes exigem que a criança esteja atenta, entenda regras, monitore as ações dos demais e reaja com agilidade.
– É uma fase importante para estimular a prática de esportes organizados – jogos que exigem coordenação e exercício aeróbico, como o futebol, ajudam a melhorar a atenção. Atividades como ioga e tae kwon do exercitam o foco, a atenção e o controle das ações.
– Atividades mais silenciosas podem exercitar a habilidade de resolver problemas, a autonomia e a reflexão. Bons exemplos são livros de atividades com labirintos e caça-palavras, quebra-cabeças ou jogos de adivinhar.
7 a 12 anos
Nessa idade, é importante ir aumentando a complexidade das atividades e estimular as que envolvem regras, movimentos, flexibilidade e atenção seletiva.
– Jogos de baralho como Espadas e Bridge, Sudoku, palavras-cruzadas e cubo de Rubik (ou cubo mágico) desafiam o cérebro e estimulam a memória operacional; games fantasiosos de regras complexas, como Minecraft e Dungeons & Dragons, ajudam a praticar estratégias e objetivos.
– Esportes organizados, instrumentos musicais e aulas de dança ajudam a praticar diversos aspectos das funções executivas.
– Pular corda, com todas as suas variações, exige prática e foco.
– Aulas de música ou corais estimulam a seguir ritmos e desenvolver coordenação.
Adolescentes
Nessa fase, muitas vezes se exige de adolescentes um alto nível de funções executivas – seja em comunicação, gerenciamento de atividades e planejamento -, ainda que elas não estejam plenamente desenvolvidas. O Center for the Developing Child sugere atividades e conversas que ajudem os jovens a praticar as habilidades com base nos desafios que eles enfrentam nessa etapa.
– Estimule o adolescente a identificar um objetivo específico que queira conquistar – e que seja significativo para ele, não necessariamente para os demais. Pode ser organizar um evento social ou planejar a ida à universidade.
– Ajude a estabelecer passos de curto e longo prazo para as metas (por exemplo, quanto dinheiro será necessário economizar para comprar um celular novo) e pensar no que será necessário para alcançá-las. É importante monitorar o progresso.
– Questões sociais, como bullying, pobreza ou violência urbana, começam a despertar o interesse dos jovens nessa fase, mas por serem amplas demais podem causar sensação de impotência ou sobrecarga. Uma sugestão é ajudá-los a identificar ações concretas para enfrentar essas questões.
– Ajude o adolescente a pensar em formas de priorizar determinadas tarefas e de evitar interrupções, sobretudo de aparelhos eletrônicos e redes sociais.
– Olhar sob a perspectiva dos demais: estimular os jovens a traçar hipóteses sobre quais podem ser as motivações das outras pessoas para suas ações.
– Atividades como esportes, ioga, meditação, música, teatro, jogos de estratégia (como xadrez) ou mesmo de computador (desde que com limites de tempo) também ajudam a praticar foco, reduzir estresse, promover decisões menos impulsivas e gerenciar o próprio comportamento.(BBC)