A decomposição da carne política
Das 400 palavras do pronunciamento de Michel Temer que deixaram um Brasil inteiro em suspense na tarde de quinta-feira, o presidente poderia ter economizado 398, e proclamado seu “Não renunciarei” uma única vez. A frase repetida em falsetto estridente, e que puxou aplausos desesperados, já tem lugar de desonra na história. Por depender de novos desdobramentos, impasses, temperatura da rua e avalanche de mais revelações, Michel Temer tornou-se o centro de um desgoverno.
Mesmo que não houvesse os fatos e fotos, fitas gravadas e transcrições da delação de Joesley Batista, ofende a inteligência de qualquer cidadão a forma caritativa como o presidente admitiu, en passant, ter tido o radioativo encontro com um empresário já então na mira de pelo menos cinco investigações policiais.
“Realmente ouvi o relato de um empresário, que por ter relações com um ex-deputado, auxiliava a família do ex-parlamentar”, mencionou Temer no discurso. Como o melhor desinfetante contra mau juízo é a transparência, tivesse o presidente recebido Joesley no Palácio do Planalto, pela porta da frente, nome na agenda e horário de expediente normal, talvez ele mesmo teria mantido a cautela de raposa brasiliense que veste como segunda pele.
Mas o presidente recebeu o visitante na calada de uma noite de março em sua residência, fora de agenda e sem registro, apesar do empresário da JBS ter se tornado notoriamente contagioso nos últimos tempos. Sem falar que o “ex-deputado” necessitado de “auxílio” não era um qualquer entre os 513 parlamentares do país, e sim o ainda e sempre ardiloso Eduardo Cunha, preso em Curitiba, condenado a 15 anos e quatro meses pelo juiz Sergio Moro.
Mesmo que a gravação liberada pelo Supremo Tribunal Federal tenha trechos inaudíveis, e que aliados palacianos se apeguem à esperança da fita ter sido submetida a uma montagem para incriminar Temer, nenhuma edição conspiratória conseguiria apagar o fato de o presidente ter ouvido o relato coloquial de uma série de façanhas de corrupção ativa — Joesley comentou ter pago propina a um procurador da República, ter “controlado” dois juízes federais para obter informações sigilosas. Entre outros.
Não ocorreu ao chefe da nação interromper nem expulsar o interlocutor. Ainda menos, informar a Justiça do ocorrido, no dia seguinte. Talvez por serem temas já tão enraizados na intimidade, rotina, necessidade e sobrevivência dos dois protagonistas.
Poucas horas após o ensaio de não-renúncia de Temer, e com o país à deriva diante da decomposição de sua carne política, Joesley Batista achou oportuno divulgar um pedido de desculpas corporativo em nome do grupo do qual é um dos donos, e que tem 270 mil funcionários espalhados em mais de 20 países.
O texto de 215 palavras é asqueroso.
Teria sido melhor Joesley ter permanecido quieto em Nova York, para onde embarcara em seu jato particular uma semana antes de o colunista Lauro Jardim, do GLOBO, destampar a cloaca contendo sua delação-bomba. O empresário de 45 anos, imune, livre, dispensado do uso de tornezeleira eletrônica, e com a fortuna bilionária pouco arranhada graças a um acordo de leniência excepcionalmente fraternal, talvez imaginou poder limpar a imagem em nove parágrafos.
Ele começa seu texto com o surrado e protocolar “Erramos e pedimos desculpas”, formatado por causídicos de corruptores corporativos. Não especifica a quem estas desculpas são dirigidas, embora devessem sê-la ao povo brasileiro, simples assim. Mas como no Brasil equilibrista de hoje a palavra “povo” soa arriscada a muitos ouvidos, a nota da JBS poderia ter endereçado o pedido de desculpas pelo menos “aos brasileiros”. Nem isso. Ficou em aberto.
De todo modo, as desculpas não seriam aceitas, por insinceras. Joesley diz não ter podido honrar os valores de sua empresa pois “teve de interagir, em diversos momentos, com o poder público brasileiro”. Isso lá é maneira de resumir uma alavancagem de dinheiro barato junto a bancos públicos nacionais que fizeram o grupo dar um salto de R$ 4 bilhões para R$ 160 bilhões em uma década? Ou de qualificar a farta distribuição de dinheiro político que fez do grupo um dos maiores financiadores de campanhas do país e uma das joias empresariais dos governos Lula, Dilma Rousseff e Michel Temer?
“Em outros países fora do Brasil fomos capazes de expandir nossos negócios sem transgredir valores éticos”, escreveu ainda o empresário, cujo grupo opera 55 fábricas nos Estados Unidos. A mesma equação pode ser vista de outro ângulo: se empresários vorazes como os do grupo JBS respeitassem nosso país como respeitam (e temem) a legislação de outros países, é o Brasil que seria capaz de expandir negócios com menos transgressões. E dar uma chance à construção de uma sociedade melhor.
Oportunidades para começar não faltam, e seria bom começar logo. Antes que o país se confunda com a “Ópera dos três vinténs”, sátira de Brecht e Kurt Weill, na qual “o homem, para sobreviver, tem de suprimir a humanidade e explorar seu semelhante”.
Por Dorrit Harazim (Blog do Noblat)