Dia do consumidor: tribunais não são única saída para conflitos
Em referência ao célebre pronunciamento do presidente norte-americano John F. Kennedy, que, nesse mesmo dia, em 1962, em cadeia nacional, após proferir a frase que dá título a esta breve reflexão, apontou a necessidade de que os consumidores passassem a ter reconhecidos alguns direitos básicos. Na ocasião, listou quatro deles: direito à informação, direito a consumir com segurança, direito de escolha e o direito de ser ouvido.
Esse breve rol de direitos, abordados pela primeira vez na história por um Chefe de Estado há exatos 55 anos, pode muito bem continuar a ser apontado, hoje, como parte do núcleo mais básico de direitos pelos quais nos cabe zelar, em nossa atuação à frente do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor.
No Brasil, desde a edição do Código de Defesa do Consumidor, em 1990, temos alguns avanços importantes. Em especial, merece destaque o fato de que, dentro de uma parcela considerável das empresas brasileiras, a temática do relacionamento com os consumidores ganhou um posicionamento mais qualificado, alcançando áreas mais estratégicas em suas estruturas de governança – e isso faz uma imensa diferença, no sentido do estabelecimento de relações mais harmônicas e mais sustentáveis entre consumidores e fornecedores.
Em contrapartida, temos ainda alguns desafios muito claros, sobretudo no que toca a clareza e transparência das práticas observadas no mercado de consumo. Ofertas e publicidades ainda geram expectativas não raro mais elevadas ou distintas do que efetivamente se entrega. Cláusulas contratuais ainda reforçam o desequilíbrio de forças entre as partes, em lugar de dar sustento a relações mais harmônicas. Tudo isso, evidentemente, minando um dos valores mais centrais de sustentação de qualquer relacionamento: a confiança.
Diante disso, assistimos a uma crescente judicialização dos conflitos de consumo, que, ao longo dos últimos anos, têm permeado as pautas de nosso Judiciário de forma verdadeiramente impressionante – e um ambiente no qual a efetividade de direitos depende do recurso sistemático ao processo, como regra, não é um ambiente sadio. O consumidor, nesse cenário, não está efetivamente protegido.
Por isso mesmo, temos trabalhado com foco incansável na agenda da desjudicialização dos conflitos de consumo, o que envolve desenvolver mecanismos adequados (como a plataforma consumidor.gov.br), mas, também, um esforço intenso e diário de sensibilização e engajamento de todos os envolvidos, consumidores e fornecedores, no propósito emancipatório de passarmos a solucionar nossos desentendimentos de forma mais pacífica e mais construtiva do que se dá por meio da lógica dos embates judiciais, em que um terceiro tem de decidir ‘o que é certo’. Precisamos criar incentivos melhores, nesse processo. Sair da lógica histórica do ‘controle e sanção’, que deságua no litígio. De forma muito simples e objetiva: fazer o certo deve ser, também, o melhor a se fazer.
No intuito de propiciar avanços mais consistentes nessa pauta emancipatória, a educação para o consumo revela-se claramente a mais relevante das agendas de longo prazo para a consolidação de relações mais equilibradas e, como sempre se dá na temática educacional, também nesse recorte as dificuldades são múltiplas: heterogeneidade de públicos, diversidade de temas, necessidade de formação de multiplicadores – e por aí vamos.
Lançar mais luz sobre as práticas de mercado mostra-se, também, algo urgente. Pensemos, por exemplo, nas transformações pelas quais tem passado o segmento das telecomunicações. As reclamações contra as empresas do setor continuam as mais volumosas; ainda assim, o principal negócio do segmento, hoje, é algo que a legislação nem sequer enquadra como ‘serviços de telecomunicação’, mas, sim, como ‘serviços de valor adicionado’: acesso à internet, tráfego de dados, comercialização de aplicativos e games, dentre outros – e os consumidores, em regra, contratam esses serviços com claro déficit de compreensão sobre suas regras de funcionamento e sobre os custos neles envolvidos. Receita certa para insatisfações e reclamações.
Numa economia cada vez mais digitalizada, qualquer planejamento que pretendamos traçar há de considerar as profundas transformações que temos vivenciado nos padrões de interação que esse novo cenário nos coloca – e estamos falando de mudanças profundas, estruturais, mesmo. Dados pessoais – desejados como ouro, nesse contexto – são coletados, processados e compartilhados, não raro, sem a clareza com que deveriam. O comércio eletrônico segue crescendo e se diversificando, com estruturas cada vez mais complexas e envolvendo cadeias de fornecimento sempre mais amplas e heterogêneas, trazendo nesse movimento uma série de novos desafios à proteção do consumidor. Modelos de negócio disruptivos, sobretudo na chamada ‘economia compartilhada’, trazem à tona uma série de novos questionamentos para os quais dispomos, ainda, de bem poucas respostas.
Avançar de modo sistemático e consistente na disseminação de conteúdos e ações de educação para o consumo. Aumentar a transparência das relações entre consumidores e fornecedores. Aperfeiçoar e ampliar o alcance e a efetividade dos mecanismos de tratamento e resolução extrajudicial de conflitos de consumo. Construir melhores incentivos para as práticas que entendemos mais adequadas. Trabalhar fortemente pela universalização do acesso à banda larga, dado que, no mundo digital, o exercício da cidadania não mais se concretiza sem conectividade. Eis aí algumas diretrizes a orientar nossos caminhos.
A necessidade de conectividade, no mundo de hoje, é algo que dispensa maior argumentação. Nesse contexto, mais evidente vai se tornando, também, a imensa rede que nos interliga a todos. O consumo não é, apenas, um tema ‘do direito’ ou ‘da economia’. É uma ação cotidiana de todos nós, em um cenário no qual a interdependência que nos assinala revela-se diariamente mais clara. Não se trata mais, apenas, de ‘proteger e defender o consumidor’; trata-se de construir melhores relacionamentos, entre todos os atores desse processo. Afinal, consumidores somos todos nós.(Veja)