Os desafios da multiparentalidade
Não é de hoje que falo da ampliação do conceito de família. As leis deixam para trás a visão patrimonialista e acompanham a evolução das multifacetadas configurações familiares a partir de uma nova lente: o afeto. Os saltos são grandes na direção de acompanhar os novos comportamentos. O que se anuncia, então, é a possibilidade de maior proteção das leis à cada indivíduo que compõem um grupo familiar.
Há pelo menos três décadas, divórcios e separações se tornaram comuns. Hoje em dia, casa-se e separa-se, no papel ou não, ilimitadas vezes. Não que seja fácil; as pessoas sofrem com a separação, especialmente as crianças e os jovens.
O convívio entre filhos e padrastos ou madrastas – os chamados pais socioafetivos – têm sido um grande desafio no seio das novas famílias.
Não é simples conter as divergências entre os adultos acerca da criança, da melhor educação a oferecer e hábitos a desenvolver. Isso às vezes é uma cortina de fumaça para esconder e justificar acusações e intransigências entre os adultos.
Não são raros os casos, por exemplo, de alienação parental – quando o genitor que detém a guarda ou outros membros da família ou um companheiro atual – entende que pode, de alguma forma, obstruir a influência do outro genitor na vida do filho. A Lei nº 12.318, de agosto de 2010, conhecida como a lei de Alienação Parental, prevê e pune atos como campanhas de desqualificação da conduta dos pais no exercício da paternidade ou maternidade, bem como criar dificuldades para o exercício da autoridade parental ou a convivência entre genitor e filho, etc.
Quando se busca efetivamente o consenso em favor dos filhos, os desafios são mais amenos. Exemplos: como organizar a vida, quando o pai biológico está distante e o pai socioafetivo é quem educa? Ou quando a mãe socioafetiva cria fortes laços com os filhos do casamento anterior do marido e, muitas vezes, assume as tarefas da mãe biológica?
Na prática, as situações se complicam na hora de relacionar dependentes no plano de saúde ou no Imposto de Renda; ou situações como autorização para uma viagem para o exterior ou mesmo as correspondências da escola que chegam com o nome do pai, quando é o padrasto que há anos comparece a esse tipo de compromisso.
É pensando nisso que muitos padrastos ou madrastas buscam incluir seus sobrenomes
ao nome dos enteados.
A jurisprudência tem apontado a possibilidade de incluir o sobrenome do padrasto ou da madrasta e manter o sobrenome do pai ou da mãe biológicos. Em alguns casos, há anuência destes, mas em sua ausência, o juiz poderá supri-las, dando a sentença favorável à inclusão. É uma espécie de reconhecimento e reafirmação do laço afetivo e de responsabilidade dos pais socioafetivos, com a solidariedade dos pais biológicos.
Mas há algo ainda mais radical, dentro do que a lei denomina “multiparentalidade”: entre alguns casos já noticiados, ressalto o de Augusto Guardia, de 19 anos, cuja mãe biológica faleceu no parto. Quando ele tinha dois anos, o pai casou-se de novo e foi a madrasta, a advogada Vivian Medina Guardia, quem o educou.
O jovem Guardia teve, pois um pai, duas mães e seis avós. No ano passado, o Tribunal de Justiça de São Paulo autorizou o acréscimo do nome completo de Vivian como mãe na certidão de nascimento de Augusto. Assim o jovem passou a ter oficialmente duas mães e um pai. O inusitado ficou por conta da manutenção dos dois nomes maternos.
A curto prazo, a solução parece favorecer a todos, dando respaldo legal às crianças que vivem nas famílias multiparentais. A longo prazo algumas consequências podem advir.
Uma refere-se aos direitos de sucessão. Nos casos de crianças e jovens com nomes de pai ou mãe duplos, pode-se pensar na chance delas se tornarem herdeiras de ambos? Mas como esse processo se dará mais adiante, tendo em vista todo o círculo familiar? E quanto aos sobrenomes, serão garantia para inclusão nos direitos de sucessão e outros mais? São dúvidas que pairam nas escrivaninhas dos operadores do Direito, sem que haja, por ora, resposta imediata. (DC)