Precatórios: fim do calote?
Precatório é uma ordem para pagamento, pelos órgãos públicos federais, estaduais, municipais ou distritais, de débitos de valor superior a a 60 salários mínimos por beneficiário, em decorrência de condenação judicial da qual não cabe mais recurso. Em decisão recente, o Supremo Tribunal Federal considerou inconstitucional o regime de pagamento parcelado dos precatórios, que autorizava os órgãos públicos a efetuar o pagamento em até 15 anos.
Se o leitor se surpreende ao tomar conhecimento de que os órgãos do Estado podem efetuar os pagamentos de forma parcelada ou sob critérios da natureza do credor, ficará ainda mais surpreso ao saber que esse passivo, considerando os valores nominais de julho do ano passado, é superior a R$ 94 bilhões.
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Estudos mostram que mais de 80% dos municípios brasileiros não têm dívidas com precatórios. O problema reside no fato de que os restantes 20% devem muito. Exemplo é o município de São Paulo, cuja prefeitura deve quase R$ 17 bilhões. Caso tenha de pagar à vista o que deve, o município comprometerá quase 60% da arrecadação anual.
Os 40% restantes da arrecadação não serão suficientes para arcar com a vinculação das receitas orçamentárias a despesas mandatórias estipuladas na Constituição, como as referentes ao pagamento de salários e encargos dos servidores públicos, dos encargos da dívida pública e da previdência social. Nessa categoria estão também as despesas com saúde e educação a cargo dos estados e municípios.
O conflito entre responsabilidades de pagamentos mutuamente excludentes é o aspecto mais importante dessa discussão. Mas não deve ser também ignorado que os precatórios representam valor expressivo da dívida dos estados e municípios e que essa forma de passivo não está contabilizada nas estatísticas da dívida pública dessas unidades da Federação.
Não é pouca coisa: em julho do ano passado, a dívida líquida dos estados e municípios era da ordem de R$ 459 bilhões. O total de precatórios soma R$ 94 bilhões, um acréscimo de 20% à dívida. É claro que esse passivo, ao menos para os grandes devedores, não cabe em seus orçamentos. Os riscos residem precisamente nisso, caso o valor total dos precatórios tenha de ser imediatamente liquidado.
Dizem os americanos que só não há como evitar dois problemas: a morte e os impostos. Aumentar impostos tem sido o caminho de menor resistência para sanar os imbroglios financeiras dos governos, aqui e na quase totalidade dos países.
A dificuldade da aplicação dessa alternativa está nos valores devidos por alguns estados e municípios. Agora mesmo, em Chipre, aventou-se a possibilidade de confiscar parte dos depósitos bancários para coletar os seis bilhões de euros necessários para fechar o pacote de socorro ao sistema financeiro do país.
AConstituição, em seu artigo 150, inciso IV, não admite impostos que resultem em confisco – nem haveria justificativa para pensar-se em tal sandice por aqui. Que alternativas restariam?
Será impossível pagar de uma só vez todas dívidas decorrentes de condenação judicial sem a suspensão do pagamento das despesas obrigatórios de caráter continuado, definidas na Constituição e na Lei de Responsabilidade fiscal. Ainda que parte do valor do passivo com os precatórios da União, dos estados e dos municípios tenha previsão orçamentária, o saldo líquido a pagar continua muito grande.
Ou muito me engano ou a solução poderá exigir que a União empreste às unidades subnacionais os recursos necessários para o pagamento dos precatórios. Essas unidades trocariam a dívida com os beneficiários das decisões judiciais por uma dívida com a União, a ser amortizada em um período longo – similar, aliás, ao do regime do pagamento fatiado dos precatórios ao longo de 15 a 20 anos.
Não é preciso muita imaginação para perceber que a transferência do passivo dos estados e municípios para a União exigiria um salto de quase 7% da dívida pública federal, se tomarmos por base os números apresentados anteriormente. Esse aumento da dívida redundaria em aumento na carga tributária futura, caso não seja possível reduzir gastos correntes para acomodar as novas despesas com juros decorrentes do aumento da dívida.
De tudo o que foi dito, contudo, o mais surpreendente é o fato de que, anos a fio, o valor dos precatórios foi crescendo sem que ocorresse a alguém que algum dia a conta chegaria. Ou, pior ainda, a sensação amarga de que se imaginava que ninguém pagaria a conta, simplesmente empurrando-a para o sucessor.
Por Roberto Fendt