Lei Maria da Penha vale também para os homens
As leis são instrumentos utilizados não só “para manter a ordem”, o que seria pouco, mas para manter a ordem com justiça. E é para que a justiça seja feita de modo eficiente que se manejam as leis. Essa explicação é para introduzir uma questão que se tornou um tanto polêmica: a utilização da Lei Maria da Penha para casos que não sejam de agressão à mulher.
É bom lembrar que essa lei, criada em 2006, foi uma resposta dos legisladores e da justiça brasileira à sociedade, não só para conter a monstruosidade que é a violência doméstica contra a mulher e à enorme pressão de órgãos internacionais, na época, devido ao descaso generalizado em relação a essa questão. A indiferença das instituições em relação aos afetos e desafetos no âmbito doméstico determinava esse contexto de negligência.
Uma das terríveis crenças que vigorava era a de que o Estado não deveria interferir no âmbito doméstico. Brigas familiares – especialmente entre o casal – eram tratadas como casos de menor importância ou, em caso de mortes, consideradas fatalidades, exceções. Hipocrisia? Sem dúvida. E inoperância do Estado frente a situações traumáticas, reveladoras de uma faceta triste da realidade social.
O fato é que para cercar todos os vetores que levam ao quadro de vulnerabilidade da mulher, foram implantadas medidas protetivas e políticas públicas integradas bastante específicas para as mulheres. Mas não existe uma palavra na lei que a impeça de ser aplicada no caso de agressões, independentemente do gênero. O que existe, isso sim, é o contexto em que ela se aplica: no lar, doce lar.
Em seu artigo 5º a Lei Maria da Penha define esse espaço claramente: “no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas”; ou “no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa”; e, ainda “em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação”.
Outro fator faz da Lei Maria da Penha um instrumento muito importante contra a impunidade. Dois anos antes da sua criação, em 2004, já havia a percepção de que a violência doméstica carecia de mais atenção.
Na época, a lei passou a entender que lesão corporal praticada nos episódios de violência no espaço do lar fosse considerada uma forma qualificada de delito, passível de punição, independentemente de gênero.
Daí o Código Penal, em seu artigo 129, ter recebido mais um parágrafo, o 9º, que tratava especificamente de violência doméstica. Nele, estipula-se a pena de detenção de três meses a um ano. A Lei Maria da Penha, contudo, alterou esse dispositivo, aumentando a pena existente. Assim, atualmente, uma vez aplicada a lei Maria da Penha, a lesão corporal praticada no âmbito doméstico tem pena de três meses a três anos de detenção, com possibilida de de aumento de 1/3 da pena se a lesão for grave.
Portanto, nada mais consequente do que utilizar a lei para os casos de violência doméstica, ainda que não relacionados à mulher especificamente. Recentemente, um episódio de violência doméstica recebeu a aplicação da lei, por determinação do STJ (Superior Tribunal de Justiça). Dessa vez, os protagonistas foram dois homens, pai e filho, sendo este o agressor. Ele tentou ter a pena atenuada a partir da utilização do Código Penal, mas o STJ entendeu que a lei Maria da Penha, sendo mais rigorosa, caberia com mais justiça no caso em questão.
E, para os juízes, em nada importou o gênero dos envolvidos.
A lei Maria da Penha também pode ser aplicada em consonância com o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) ou com o Estatuto do Idoso. Há meses, em Planaltina, região do Distrito Federal, a Justiça determinou a aplicação da Lei Maria da Penha em favor de um idoso de 69 anos, agredido em sua própria casa por um jovem de 21 anos que, mesmo sem ser propriamente da família consanguínea, estava coabitando o local.
Também com base no Estatuto do Idoso, foram requeridas pela promotoria medidas protetivas ao agredido, constantes na Lei Maria da Penha, e que até então eram utilizadas apenas no caso de violência contra mulheres. O pedido foi acatado pela Justiça local e o agressor teve a prisão preventiva decretada.
Talvez, quem sabe em um futuro nem tão distante, homens e mulheres se respeitem, independentemente de idade, cor, religião, orientação sexual ou quantas outras características existam para separar as pessoas e colocá-las em situação de risco.
Na verdade, no dia em que as pessoas tiverem o respeito como regra básica de sobrevivência, talvez não sejam necessários tantas leis e estatutos – da criança, do adolescente, do idoso – e instrumentos como a Lei Maria da Penha, para coibir a violência doméstica; a violência que ocorre justamente onde se espera receber apoio e afeto.