810 dias sem trem: obras do VLT não avançam e Subúrbio Ferroviário sofre sem o modal
Soteropolitanos gastam quase dez vezes mais em transporte sem o trem
“É cheio, demora mais e ainda custa caro”, afirma Nair Silva, 43 anos, moradora de Plataforma e que há pouco mais de dois anos precisou trocar o trem pelo ônibus para chegar na Calçada, onde frequentemente faz compras. Isso porque o trem, que funcionava há 160 anos ligando a Calçada a Paripe com dez estações, teve a operação interrompida há 810 dias. Em seu lugar, a esperança é o Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), com previsão de início do funcionamento para o segundo semestre do ano de 2024.
Porém, a obra parece não ter saído do lugar, segundo moradores do Subúrbio Ferroviário. “Lá a gente não vê nenhuma mudança, a estação toda abandonada sem nenhuma obra. Aqui na Calçada fizeram só botar os tapumes aí, mas eu também não vejo avanço. Enquanto isso, a viagem que eu fazia em 20 e poucos minutos, às vezes, leva até 1h30 a depender do engarrafamento”, lamenta Nair.
E não é só em Plataforma que não se vê sinal de VLT chegando. Seja na Calçada, no Lobato, Escada, Periperi ou Paripe, só há estações fechadas, sem ação de máquinas ou trabalhadores.
A Secretaria de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia (Sedur), que acompanha o processo de construção, foi procurada para informar sobre prazos, atrasos e o cronograma de execução do VLT, e enviou uma nota (leia abaixo na íntegra).
“Os entendimentos entre o Governo do Estado e a Skyrail Bahia, braço da Build Your Dreams (BYD), para a construção do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), que vai substituir os antigos trens do Subúrbio Ferroviário de Salvador, seguem em andamento, em conformidade com as normas do contrato de Parceria Público-Privada (PPP). Os avanços na construção do modal foram impactados também pela variação dos preços dos insumos.
As obras do VLT são complexas e o cronograma vigente está sendo rediscutido entre as esferas do governo para ser retomado. Até o momento, foram realizados serviços preliminares, como topografia, sondagens, implantação de canteiros e elaboração de projetos executivos.
A construção do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) será realizada por meio de um consórcio na modalidade Parceria Público-Privada (PPP), entre o Governo da Bahia e a BYD. A Skyrail Bahia será a responsável pela implantação, operação e manutenção do modal, que transportará 172 mil pessoas por dia. A estrutura de baixo impacto ambiental proporcionará uma nova realidade ao Subúrbio Ferroviário de Salvador.
Em relação aos trens, parte deles foram doados para restauração e serão destinados a projetos culturais e memorial da ferrovia baiana e outra parte vendida, por meio de leilão público. Já as estações foram demolidas, sendo mantidas apenas as Estações da Calçada e de Periperi, que atualmente são de responsabilidade compartilhada entre a CTB e Skyrail Bahia”.
Apesar do Estado atuar como fiscalizador, a obra do sistema VLT é uma Parceria Público-Privada (PPP) e a implantação do novo modal é de responsabilidade da Skyrail Bahia. Procurada, a empresa informou que os entendimentos com a gestão estadual seguem em andamento para que a construção do modal se torne viável. Destacou ainda que não se trata de um processo simples de ser conduzido.
“As obras do VLT são complexas e o cronograma vigente está sendo rediscutido entre as esferas do governo para ser retomado. Até o momento, foram realizados serviços preliminares, como topografia, sondagens, implantação de canteiros e elaboração de projetos executivos”, respondeu a Skyrail em nota, sem falar sobre os prazos para conclusão do projeto.
Dor no bolso
Enquanto isso, quem pagava R$ 1 para ir e voltar de trem, sofre para conseguir desembolsar quase R$ 10 para fazer o mesmo percurso, como conta Jucineide de Santana, 47, que mora do lado da antiga estação do Lobato.
“Tem gente que eu conheço aqui que sai do Lobato e vai até a Calçada andando porque não tem o dinheiro do transporte. Com R$ 1, era mais acessível para todos. Eu sei que estava capenga, mas pelo menos existia. Agora, a gente não tem nada. O povo do Lobato sentiu muito isso”, afirma.
O problema é parecido em Periperi, onde mora Maurício Sampaio, 36. Ele trabalha na Calçada e precisa ir todos os dias até o local. Antes do fim do trem, as contas não apertavam por causa do transporte. Agora, é mais uma dor de cabeça com a qual ele precisa lidar no dia a dia.
“O trem faz muita falta por conta do gasto. Eu hoje pago praticamente dez vezes mais do que há dois anos para chegar na Calçada. Os R$ 10 podem parecer pouco, mas se você contar que é o mês todo prejudica demais. Ainda mais nessa situação de comida tão cara como está. Fica difícil para quem tem que cuidar da família”, reclama o ambulante.
Comércio esvaziado
Seja em uma ponta [na Calçada] ou na outra [em Paripe] dos trilhos, a ausência do modal impacta também quem nem entrava nele, mas dependia da sua operação para ver o trabalho dar certo. Marivaldo Paixão, 57, vende pimentas ao lado da estação de Paripe há mais de 10 anos. Segundo ele, a diferença após a desativação é motivo para chorar.
“A venda caiu mais de 80%, hoje a gente vende mais para comer mesmo. Foi como se tirasse nossos pés e mãos. O trem que era o movimento. De cinco em cinco minutos, isso aqui parecia o Carnaval de cheio. Hoje você vê como está aí. Vinha cliente do Subúrbio todo com R$ 1. Quem vai vir precisando pagar R$ 10 e ainda com todo transtorno de ônibus?”, questiona.
Fernando Sena, 57, trabalha como ambulante na Calçada há mais de 30 anos. Além do impacto no movimento do local, ele afirma que as questões financeiras derrubaram as suas vendas em mais de 50% desde o fim do trem.
“Antes, o cara tinha R$ 5 no bolso, conseguia vir e voltar de trem e ainda pegava R$ 2 de aipim ou outra coisa. Na segunda, eu comprava dez caixas de maçã e sexta tinha que pegar mais cinco pro final de semana. Agora, pego cinco caixas e ainda fica sobrando a semana inteira”, conta.
Trilho de complicações
Os problemas de Fernando e Marivaldo parecem não ter data para acabar se dependerem da chegada do VLT. Sobre os problemas para a efetiva construção da nova forma de transporte, a Skyrail justifica o atraso afirmando que “os avanços na construção do modal foram impactados também pela variação dos preços dos insumos” que aumentaram após a assinatura de contrato para execução.
Essa não é a primeira vez que os valores viram motivo para novas discussões entre o público e privado na construção do modal. Em junho de 2022, como mostrou a coluna Satélite, o consórcio chinês Skyrail ameaçou abandonar a obra em curto prazo caso o governo do estado se recusasse a injetar ao menos R$ 1,5 bilhão em aditivos ao contrato de concessão firmado.
Antes disso, em janeiro do mesmo ano, as obras chegaram a ser paralisadas, ainda de acordo com a coluna Satélite. O motivo seria a resistência do então governador Rui Costa (PT) em ceder às pressões do consórcio por mais verba além do que já estava previsto em contrato no primeiro momento. Barreira legais, no entanto, impediram que o rompimento da PPP.
Por isso, a Skyrail Bahia será a responsável pela implantação, operação e manutenção do modal. A primeira fase do VLT prevê a construção de 21 estações que começam no Comércio, correm todo o Subúrbio Ferroviário e terminam em Simões Filho, na Região Metropolitana de Salvador (RMS). A segunda fase leva o modal até a estação Acesso Norte do metrô da capital.
(CORREIO)
Foto:(Arisson Marinho/CORREIO)