Audiência pública debate recusa de atendimento a cidadãos que buscam tratamento alternativo à transfusão de sangue
A existência ou inexistência de protocolos e fluxos de atendimento para os cidadãos que manifestem resistência ao uso de transfusão sanguínea como terapia nas unidades ligadas ao Sistema Único de Saúde (SUS) foi o foco da audiência pública, realizada dia 21, por videoconferência, sob a coordenação do promotor de Justiça Carlos Robson Leão, com o apoio do Centro de Apoio Operacional da Saúde (Cesau), presente por meio da sua coordenadora, promotora de Justiça Patrícia Medrado. A audiência foi agendada com o objetivo de obter esclarecimentos do Estado da Bahia e dos Municípios de Salvador e Madre de Deus acerca do tema, tratado em inquérito civil pela Promotoria de Justiça com Atribuição na Área de Saúde de Salvador.
O inquérito trata ainda das unidades de saúde que utilizam técnicas alternativas à transfusão, bem como das tecnologias utilizadas como recursos alternativos. A investigação versa também sobre as providências adotadas em caso de atendimento emergencial e de urgência, nos casos em que haja manifestação expressa de contrariedade ao uso da técnica de transfusão sanguínea. O promotor de Justiça Carlos Robson Leão explicou que o inquérito teve por base um expediente do Ministério Público Federal (MPF) encaminhado ao MP sobre a resistência ao protocolo de atendimento com transfusão de sangue e os eventuais prejuízos que essa recusa poderiam provocar. O MP oficiou diversas unidade de Saúde e constatou que na maioria delas não há protocolos de atendimento alternativos à transfusão. “Cabe, na maioria dos casos, à equipe médica essa definição”, salientou Carlos Robson Leão.
O Cesau possui uma orientação técnica sobre o tema, cujo conteúdo foi explicado brevemente pelas assessoras técnicas periciais do MP, as médicas Ana Paula Pinheiro Rodrigues de Mattos e Poliana Brito Barbosa. Elas explicaram que existem hoje terapias alternativas à transfusão, que podem ser aplicadas a uma série de casos, a exemplo da suplementação de ferro, uso do sangue do próprio paciente e da chamada circulação extracorpórea. As médicas salientaram, porém, a existência de algumas dificuldades para o uso de algumas dessas alternativas, sobretudo nos casos de urgência e emergência, uma vez que a maioria delas demanda uma preparação pré-operatória “bastante específica, que não é possível ser executada sem uma antecedência planejada”. Outro problema apontado pelas assessoras técnicas periciais do MP foi a falta de capacitação em algumas unidades do SUS para a aplicação desses protocolos alternativos.
Falando pela Secretaria de Saúde de Salvador, a sua diretora de Atenção Primária, Zaida Melo, salientou a existência de um protocolo alternativo ao uso da transfusão sanguínea que já vem sendo aplicado no Hospital Municipal de Salvador. Segundo ela, o protocolo toma por base o consenso e consiste em indicar os pacientes em risco e, a partir daí, definir estratégias pactuadas entre o paciente, a família e a equipe médica, a quem cabe indicar os tratamentos alternativos, bem como apontar as possíveis consequências ao paciente no caso da sua utilização, tudo mediante termo de consentimento. “Desde o uso do protocolo não tivemos no hospital nenhum problema entre familiares e médicos”, frisou Zaida Melo. Pela Secretaria de Saúde de Madre de Deus falaram os diretor administrativo e o coordenador médico do Hospital Municipal, os médicos Alessander Rodrigues da Rosa e Eduardo Marinho da Silva Rocha. Eles afirmaram que, apesar de não disporem de um protocolo específico, sempre buscam priorizar o paciente. A Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (Sesab) se manifestou por meio do procurador Gustavo Cerqueira Filho, da Procuradoria Geral do Estado, e do diretor-geral da Fundação Hemocentro da Bahia (Hemoba), o médico Fernando Luiz Vieira de Araújo. Eles esclareceram que o Estado adota o princípio da “mínima transfusão”. “Quando há recusa, apresentamos as alternativas clínicas que o paciente pode suportar e utilizam os protocolos individualizados, sempre usando o mínimo possível quando a transfusão se apresenta como a única alternativa para preservação da vida”, afirmou o diretor do Hemoba, Fernando Araújo.
Em nome da Associação Testemunhas Cristãs de Jeová, o advogado Felipe Augusto Basílio falou que não aceitar a doação de sangue de terceiros, nem dos seus componentes, é “um ponto inegociável para os adeptos da sua religião, pois se fundamenta em princípios bíblicos”. O advogado caracterizou a intervenção médica sem o consentimento informado como algo que viola os direitos humanos do paciente testemunha de Jeová, respaldando sua argumentação em diversos pareceres do Supremo Tribunal Federal (STF). Felipe Basílio propôs a criação de um protocolo de atendimento a pacientes que se recusem à transfusão e salientou sua oposição à transfusão obrigatória, bem como à transferência, sem alternativas, para outras unidades de saúde do paciente que se recusa, por princípio religioso, ao tratamento com transfusão de sangue.
Representando o Conselho Regional de Medicina (Cremeb), seu presidente, Otávio Marambaia dos Santos, apontou como desafio para o uso das técnicas alternativas o treinamento dos profissionais da rede pública. O médico frisou que a orientação do Conselho é que os recursos sejam usados “sempre no limite da segurança do paciente” e lembrou que “ao não usar um recurso terapêutico disponível, caso isso resulte na morte do paciente, o médico pode ser responsabilizado, inclusive criminalmente, por omissão de socorro”. “O respeito à autonomia é fundamental, mas seu limite é a lei, sobretudo quando a morte é iminente”, concluiu o presidente do Cremeb. Na conclusão da audiência, o promotor de Justiça Carlos Robson Leão informou que irá oficiar o Estado e o Município de Madre de Deus para apurar eventuais recusas de atendimento, bem como informações acerca de casos em que pacientes se recusaram à transfusão e seus desdobramentos.
Cecom/MP