Os riscos à saúde da colchicina, que poderia ser nova arma contra covid-19
O uso, indiscriminado e sem acompanhamento médico, de um anti-inflamatório com potencial para se tornar uma nova arma no tratamento da covid-19 pode trazer sérios riscos à saúde e até matar.
Um estudo recente liderado por pesquisadores brasileiros mostrou que a colchicina, medicamento usado há décadas no tratamento da gota, ajudaria a combater a inflamação pulmonar e a acelerar a recuperação de pacientes com quadros moderado e grave da doença causada pelo novo coronavírus.
Segundo a Sociedade Brasileira de Reumatologia, a gota “é uma doença inflamatória que acomete sobretudo as articulações e ocorre quando a taxa de ácido úrico no sangue está em níveis acima do normal (hiperuricemia)”.
As conclusões da pesquisa foram divulgadas na plataforma medRxiv, em artigo ainda sem revisão por pares.
No entanto, o uso desse medicamento sem a supervisão de um profissional de saúde envolve sérios riscos, podendo levar à morte, quando há overdose, por sua toxicidade. Casos de superdosagem acidental já ocorreram.
Os sintomas variam de gastrointestinais, como diarreia, náuseas e vômitos, em um estágio inicial, até queda de pressão, dificuldade respiratória, insuficiência renal, lesão hepática e morte, em uma fase subsequente.
Entre os que se recuperam, em uma terceira etapa, pode haver estomatite (doenças ou inflamações da cavidade bucal) e queda de cabelo.
Overdose acidental
Por causa de sua toxicidade, a colchicina já costumava ser prescrita no Brasil para o tratamento da gota apenas a pacientes que têm contraindicação para outros anti-inflamatórios.
De fato, casos graves de overdose acidental de colchicina em pacientes recebendo tratamento para um ataque agudo de gota levaram a Agência Espanhola de Medicamento e Produtos de Saúde, o órgão de vigilância sanitária do país, a emitir um informe, em agosto de 2010, sobre como a droga deveria ser administrada por médicos e os riscos envolvendo seu uso.
“A Agência Espanhola de Medicamentos e Produtos de Saúde (AEMPS) soube recentemente de vários casos graves de overdose acidental de colchicina em pacientes recebendo tratamento para um ataque agudo de gota”, assinala o informe.
“Este fato aliado à publicação de casos de overdose acidental, e mesmo intencional, motivam a necessidade de lembrar aos profissionais de saúde o risco de overdose por esse medicamento e as medidas necessárias para prevenir essas situações, levando em consideração sua estreita margem terapêutica e a possibilidade de interações com medicamentos que inibem sua via metabólica”, acrescenta.
De acordo com a AEMPS, “antes de prescrever a colchicina, o médico deve descartar o comprometimento da função renal do paciente”.
O órgão destaca que “a colchicina é uma droga com estreita margem terapêutica e em overdose é altamente tóxica, com grande variabilidade em relação à dose letal”.
“Os sintomas de overdose podem levar horas para se manifestar. Portanto, os pacientes que receberam uma superdosagem requerem avaliação médica imediata.”
“Na sua evolução, distinguem-se 3 fases: inicialmente, sintomas gastrointestinais (diarreia, náuseas, vômitos e dores abdominais); na segunda fase, insuficiência multiorgânica com hipotensão, choque cardiogênico, dificuldade respiratória, insuficiência renal, lesão hepática, afetação do Sistema Nervoso Central (SNC), hipocalcemia e aplasia medular, com elevada morbi-mortalidade; finalmente, em uma terceira fase, caso se recuperem, apresentam leucocitose de rebote, estomatite e queda de cabelo”, diz a AEMPS.
O órgão finaliza a nota com a ressalva de que a colchicina “só deve ser usada com receita médica, explicando claramente a posologia ao paciente, a fim de evitar erros de dosagem”.
Mortes no Brasil
No Brasil, após oito mortes ocorridas entre 2004 e 2005, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) decidiu mudar as regras de manipulação da substância. Sua venda está sujeita à apresentação de receita médica.
Segundo um dos autores do estudo brasileiro, voluntários tratados com a colchicina “ficaram livres da suplementação de oxigênio, em média, três dias antes do que os pacientes que receberam apenas o protocolo terapêutico padrão do hospital”, disse o médico Renê Oliveira, que coordenou o estudo no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP-USP) em entrevista à Agência FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo).
“Além disso, puderam voltar para casa mais cedo”, acrescentou ele.
Também em entrevista à Agência Fapesp, Paulo Louzada Junior, professor da FMRP-USP e coautor do artigo, falou sobre os benefícios da redução observada no tempo de recuperação dos doentes.
Segundo ele, poderia representar uma economia significativa para a rede pública de saúde, além de permitir o atendimento de um número maior de pessoas em um mesmo período.
“Cada dia de internação em unidade de terapia intensiva (UTI) pode custar entre R$ 5 mil e R$ 10 mil por paciente. A suplementação com oxigênio, mesmo quando é feita fora da UTI, também é uma terapia cara. A colchicina, por outro lado, é um medicamento barato e com potencial de uso em larga escala. O tratamento completo custou cerca de R$ 30 por paciente”, afirmou Louzada Junior.
Ressalva
O especialista ressalvou que, no caso da covid-19, os benefícios foram observados apenas em pacientes hospitalizados e com algum nível de comprometimento pulmonar”.
“Não recomendamos o uso indiscriminado do fármaco, nem para prevenção e nem para tratar sintomas leves da doença”, destacou Louzada Junior.
Os pesquisadores acrescentaram ainda que, mesmo em pacientes internados em hospital, os benefícios ainda precisam ser confirmados em uma pesquisa com um número maior de participantes.
“Já solicitamos autorização da Conep (Comissão Nacional de Ética em Pesquisa) para a próxima fase e, em breve, começaremos a recrutar voluntários”, disse Oliveira à Agência Fapesp.
(BBC)