Os riscos de as crianças viverem coladas a celulares
“Baby shark doo doo doo doo doo doo doo doo.” E, quando parece estar acabando o sofrimento, o refrão sofre ligeira adaptação, e dá-lhe “Mommy shark doo doo doo doo doo doo doo doo”. Chega? Não, porque… “Daddy shark doo doo doo doo doo doo doo doo.” Os pais encaram o martírio, ouvido a distância segura, porque os filhos, alguns pequenos mesmo, de 3 anos, talvez 4, estão hipnotizados, quietinhos. Baby Shark, eis o nome do vídeo, composto por uma dupla de educadores americanos, já passou dos 3,9 bilhões de visualizações no YouTube desde que foi lançado, em 2016. É uma espécie de Galinha Pintadinha — talvez mais entorpecente. E onde é que a meninada vê os tubarões coloridos e estridentes? Preferencialmente em smartphones. Some-se a proliferação dos aparelhos ao conteúdo magnético e temos um dos grandes fenômenos de nosso tempo: o crescente número de crianças que, cada vez mais cedo, estão conectadas à internet.
No Brasil, três em cada dez meninos ou meninas com idade entre 4 e 6 anos têm um celular para chamar de seu. A frequência do uso aumenta exponencialmente. Segundo pesquisa da Common Sense Media, organização americana sem fins lucrativos destinada a rastrear os hábitos tecnológicos da juventude, mais que dobrou o tempo da petizada diante dos vídeos, chegando à média diária (média!) de uma hora. Um detalhe: no YouTube, menores de 13 anos não poderiam ver vídeos (o correto é acessar a versão Kids), e, no entanto, os cliques não param. O Facebook também restringe o acesso a maiores de 13 anos, no entanto, segundo pesquisas recentes, 50% dos menores de 12 anos no Brasil estão lá. Há, enfim, uma avalanche de consumo precoce de conteúdo emitido pelas telas pequenas, à mão.
Mas, afinal, o que seria excessivo? A Organização Mundial da Saúde (OMS) sugere que menores de 2 anos não tenham contato algum com telas, nem mesmo de televisores. Depois dessa idade, a TV pode ser liberada, mas no máximo durante uma hora por dia. Smartphone próprio, ou tablet, tão somente depois dos 8 anos, e sempre com vigilância. Antes disso, a prematuridade implica problemas de aprendizado (é preciso ler mais), de visão (há uma epidemia de miopia entre os pequenos) e até de isolamento social (avalia-se que o abuso da internet é o que fez aumentar os índices de depressão entre jovens na faixa dos 10 aos 14 anos).
“Não adianta os pais simplesmente proibirem a utilização dessas tecnologias, porque os filhos encontrarão formas de chegar a elas”, diz a psicóloga Sylvia van Enck, do Núcleo de Dependências Tecnológicas da Universidade de São Paulo (USP). “Em vez de lutarem contra a maré virtual, o fundamental é os pais assumirem a responsabilidade de educar as crianças para lidar com o mundo virtual.” Na prática, trata-se de dosar o acesso, tornando-o benéfico. O universo on-line não é um mal em si. Para a psicóloga da USP, “há adolescentes que, mesmo quando se sentem isolados, têm facilidade para conversar com amigos em redes sociais, por exemplo. Também se podem utilizar o smartphone, os sites, os aplicativos como forma de criar um senso de responsabilidade em crianças, ensinando limites e apontando as consequências do exagero”.
Nas situações extremas, de vício, deve-se procurar auxílio. As clínicas especializadas são cada vez mais populares. No Brasil, além do Núcleo de Dependências Tecnológicas da USP, há um centro de renome no Rio de Janeiro, o Instituto Delete. Eles seguem caminho inaugurado por iniciativas de recuperação desenvolvidas nos Estados Unidos e na Ásia. No Japão, o Ministério da Educação possui um programa federal que oferece psicoterapia. Exemplo radical é o Centro de Tratamento de Vício em Internet Daxing, em Pequim (China), no qual os atendidos são submetidos a uma rotina inspirada na rígida disciplina militar, em que nada é permitido. A chave, enfim, é o bom-senso. Soa inaceitável afastar crianças e adolescentes da conexão digital — mas achar que um smartphone pode fazer as vezes de pai, mãe e professor é errado.(Veja)