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O polêmico projeto que permite inflar Fundo Eleitoral e afrouxa controle sobre partidos

O Senado Federal deve votar esta semana um projeto de lei que permitirá o aumento do valor destinado aos partidos políticos nas eleições de 2020 e, ao mesmo tempo, diminuirá o controle sobre a forma como os partidos usam o dinheiro público.

O projeto muda 50 artigos da Lei das Eleições (de 1997), da Lei dos Partidos Políticos (de 1995) e de outras. O principal ponto é alterar a forma como a Justiça Eleitoral fiscaliza o uso que os partidos fazem do Fundo Partidário – tornando o controle mais frouxo, segundo os críticos.

As mudanças vão desde as regras para a compra de passagens aéreas até a fiscalização das atividades financeiras dos partidos por parte dos bancos. O texto permite ainda vários usos novos para o dinheiro público do Fundo Partidário – inclusive comprar imóveis e impulsionar publicações em mecanismos de busca, como o Google.

Outro aspecto fundamental é que a proposta abre a possibilidade do Orçamento de 2020 trazer um valor maior para o Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), conhecido como Fundo Eleitoral.

O FEFC é o dinheiro que os partidos políticos recebem, em anos de eleições, para financiar as campanhas de seus candidatos. Para que um valor maior possa ser usado nas eleições municipais de 2020, o projeto que está no Senado precisa ser aprovado até o começo de outubro. A proposta recebeu o número 5.029/2019.

O montante do Fundo Eleitoral para a disputa de 2020 ainda está indefinido: o governo de Jair Bolsonaro (PSL) enviou o valor de R$ 2,5 bilhões no projeto do Orçamento de 2020 – bem mais que o valor de R$ 1,7 bilhão de 2018. Alertado pela bancada do partido Novo, o governo admitiu depois que havia um erro de cálculo – e disse que alteraria o valor para R$ 1,8 bilhão, mas isto ainda não aconteceu. Alguns deputados, no entanto, querem subir a cifra no Orçamento para até R$ 3,7 bilhões.

“Mesmo que o Orçamento traga um valor maior, os partidos não poderão usar o dinheiro extra do Fundo Eleitoral sem aprovar o projeto 5.029. Uma das coisas que esse projeto faz é eliminar um limite da Lei das Eleições para permitir o uso do dinheiro”, explica a advogada eleitoral Marilda Silveira, professora da pós-graduação na Escola de Direito do Brasil (EDB). O limite a ser suprimido é que está no artigo 16-C da Lei das Eleições, detalha ela.

No Senado, o projeto precisa passar pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) antes de ser votado no plenário. A expectativa é de que as duas etapas sejam vencidas nesta quarta-feira (18), segundo disse à BBC News Brasil um interlocutor da cúpula do Congresso.

O relator na CCJ, o senador Weverton Rocha (PDT-MA), apresentou relatório rejeitando todas as emendas, e a proposta consta como o primeiro item da pauta de votações do Senado para esta semana.

O projeto foi apresentado em novembro de 2018 pelos deputados Arthur Lira (atual líder do PP, AL); Baleia Rossi (líder do MDB, SP); Domingos Neto (PSD-CE) e Lucas Vergílio (SD-GO). De início, tratava apenas da relação trabalhista entre os partidos e seus funcionários. A forma atual foi dada pelo relator na Câmara, o deputado Wilson Santiago (PTB-GO) – e o texto foi aprovado pelos deputados por 263 votos a 144, no dia 4 de setembro deste ano. A reportagem não conseguiu contato com o petebista.

Humberto Jacques de Medeiros é procurador da República e o atual Procurador-Geral Eleitoral, isto é, o representante do Ministério Público no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Ele explica que o debate a respeito do projeto envolve dois valores diferentes: a autonomia partidária, de um lado, e a transparência no uso do dinheiro público, de outro.

“Em todo o mundo democrático, se entende que o Estado não deve controlar ou fiscalizar demasiadamente os partidos. A liberdade dos partidos é um dogma da democracia. Se o Estado passa a controlar os partidos políticos, isso significa que o partido no poder passa a poder controlar a oposição”, diz ele. A liberdade dos partidos, diz o procurador, tem a mesma importância da liberdade de imprensa ou a liberdade de organização dos sindicatos.

“Por outro lado, o dinheiro público precisa ser fiscalizado. Esse dinheiro que os partidos recebem é dinheiro público”, diz.

“Então sempre existe essa tensão entre as duas leituras da Constituição: a da máxima transparência do gasto público; e a defesa da autonomia partidária.”

Na semana passada, um grupo de entidades que militam pela transparência das contas públicas divulgou uma nota criticando pesadamente o projeto, que traria “graves retrocessos”. “A indecorosa proposta representa um dos maiores retrocessos dos últimos anos para transparência e integridade do sistema partidário brasileiro”, diz o texto, que destaca 16 pontos como os mais preocupantes da proposta.

Já os defensores do projeto argumentam que o dinheiro e as novas regras são necessárias para o funcionamento da democracia.

“Nós não estamos autorizando aqui dinheiro para simplesmente sair fazendo assalto no meio da rua. É para fazer política, para fazer partido, para fazer democracia, eleição. Então, terminou a eleição, você prestou conta, e a Justiça disse que o senhor está em dia, OK”, disse o senador Weverton Rocha na quarta-feira semana passada (11), quando o plenário do Senado tentou votar o assunto pela primeira vez.

Rocha disse ainda que tinha pedido a seus assessores para levantar os nomes de todos os congressistas que se dizem contrários ao Fundo, mas que usaram os recursos em suas campanhas em 2018.

O que exatamente o projeto faz?

A versão atual do texto é extensa: pretende desde explicitar na lei que assessores e dirigentes partidários não tenham vínculo de emprego com os partidos, até permitir que as legendas tenham sede nacional em qualquer lugar do país (hoje, é obrigatório que as sedes fiquem em Brasília).

Mas as principais alterações são duas, de acordo com a professora Marilda Silveira, da Escola de Direito do Brasil (EDB): a proposta permite que os partidos usem qualquer sistema contábil para prestar contas; e diz que os partidos só podem ser punidos caso haja dolo (isto é, a intenção de cometer irregularidade) nos casos em que as contas partidárias forem rejeitadas.

Hoje, os partidos usam um sistema elaborado pela Justiça Eleitoral para prestar contas de como usaram o dinheiro do Fundo Partidário. Batizado de Sistema de Prestação de Contas Anuais (SPCA), ele permite que o setor encarregado de fiscalizar as contas partidárias no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) aplique algoritmos para descobrir inconsistências ou problemas nas contas.

Se cada partido usar um sistema contábil diferente, essa possibilidade deixa de existir – o que inviabiliza a fiscalização, diz Marilda.

O setor responsável por esta fiscalização no TSE se chama Asepa (Assessoria de Exame de Contas Eleitorais e Partidárias). O número de funcionários é bem pequeno – 34, sendo apenas 15 contadores. Sem padronização, a equipe não conseguiria analisar as contas dos 33 partidos políticos do país, diz ela.

“É verdade que o sistema SPCA tem problemas. Mas por outro lado me parece pouco razoável deixar as prestações de contas ao ‘Deus dará’, com cada partido fazendo como quiser”, diz Marilda.

Em relação à necessidade de provar que houve a intenção de cometer a irregularidade (o dolo), o problema é a possibilidade de tornar o processo de prestação de contas ainda mais complexo.

“A prestação de contas é para apurar a regularidade dos gastos, não a responsabilidade dos dirigentes, o que é muito mais complicado. Essa disposição tende a transformar a prestação de contas num processo muito mais complexo e difícil de cumprir dentro do prazo de cinco anos (exigido pela lei)”, diz ela. “Hoje, na maior parte dos casos, a punição aos partidos é objetiva. Não depende de apurar se houve dolo ou não”, diz Marilda.

O projeto também favorece os partidos em dois outros pontos, em relação às prestações de contas. Primeiro, acaba com a possibilidade dos técnicos da Justiça Eleitoral recomendarem a rejeição das contas de uma sigla, como podem fazer hoje. E também limita o desconto das multas a serem pagas pelas legendas, em caso de rejeição das contas, a 50% do valor do Fundo Partidário num determinado mês (hoje, a parcela inteira do mês pode ser retida para quitar o débito).

Passagem aérea, advogado e até Google

Outras alterações do texto também são alvo de críticas, inclusive dentro do Congresso. Ao todo, a redação final do projeto altera 50 dispositivos na Lei das Eleições, na Lei dos Partidos Políticos, no Código Eleitoral e na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). A íntegra da redação final está disponível aqui.

Uma das mudanças mais polêmicas é a que permite aos partidos usar dinheiro público para pagar consultores e advogados para candidatos e filiados aos partidos, sem limite de valor – inclusive aqueles acusados de cometer irregularidades.

Quando o texto foi votado na Câmara, deputados do partido Novo ironizaram este trecho chamando-o de “emenda Lula Livre” – pois possibilitaria, em tese, que o PT usasse o dinheiro do Fundo Partidário para pagar pela defesa do ex-presidente.

Outra mudança curiosa é a que permite aos partidos usar a o dinheiro do Fundo para pagar passagens aéreas de qualquer pessoa – inclusive quem não seja filiado à legenda. Os novos usos possibilitados pelo projeto não se resumem a isto: incluem desde a compra, construção ou reforma de imóveis até o impulsionamento de publicações em redes sociais e a compra de anúncios em mecanismos de busca, como o Google.

A relação dos partidos com os bancos também muda, de acordo com o projeto. As instituições financeiras não poderão mais incluir as contas bancárias dos partidos nos mecanismos destinados a “pessoas politicamente expostas” (ou PEPs, na sigla em inglês). A norma atual do Banco Central determina uma série de procedimentos especiais – mais rígidos – que as instituições financeiras precisam seguir ao lidar com os PEPs.

Por fim, o projeto também recria a Propaganda Partidária – diferente da propaganda eleitoral, ela vai ao ar no rádio e na TV de forma contínua, e não só quando há eleições.

O tempo de cada partido varia conforme o tamanho da bancada na Câmara: as siglas com mais de 20 deputados eleitos, por exemplo, terão direito a 20 minutos por semestre em rede nacional, e mais 20 minutos em redes regionais. Essa propaganda também é paga com dinheiro público, por meio do abatimento de impostos das empresas de comunicação.(BBC)

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