CiênciaNotícias

Como empresas estão ganhando dinheiro com seu DNA

Se você já enviou amostras de DNA para fazer testes de ancestralidade ou exames de saúde, é provável que seus dados genéticos sejam compartilhados com terceiros para realização de pesquisas médicas ou até mesmo para solucionar crimes, a menos que você tenha solicitado especificamente à companhia para não fazer isso.

A questão veio à tona no fim de janeiro, quando a empresa de genealogia FamilyTreeDNA admitiu que estava compartilhando informações genéticas de seus clientes com o FBI, a polícia federal americana, para ajudar a identificar suspeitos de estupros e assassinatos.

Outra companhia de análise de DNA, a 23andMe, assinou um contrato de US$ 300 milhões com a gigante farmacêutica GlaxoSmithKline (GSK) para ajudar no desenvolvimento de novos medicamentos.

Mas será que quem contrata estes serviços está ciente de que terceiros podem ter acesso às suas informações genéticas para pesquisa médica? Esse tipo de relação pode trazer benefícios ou devemos ficar preocupados?

Consentimento no uso de dados

A 23andMe é uma empresa com sede na Califórnia, nos EUA, que oferece relatórios sobre ancestralidade e saúde com base em análise de DNA a partir de amostras de saliva. A companhia diz que tem mais de cinco milhões de clientes, dos quais mais de 80% concordaram em participar de suas pesquisas, criando uma enorme base de dados genéticos.

Quando a parceria com a GSK foi anunciada no ano passado, Anne Wojcicki, CEO da empresa, afirmou acreditar que o acordo de cooperação aceleraria o avanço de descobertas científicas.

Isso quer dizer, então, que a companhia mudou seu foco de atuação e passou a comercializar seu banco de dados genético?

“Eu diria realmente que não”, responde Kathy Hibbs, diretora jurídica da 23andMe.

“A maneira como olhamos para o nosso negócio é como um círculo virtuoso. Temos consumidores interessados e motivados em relação a sua própria saúde – como nossa genética pode influenciar o risco de desenvolver certas condições.”

A ideia, diz ela, é realizar descobertas que ofereçam aos clientes mais informações que possam usar para embasar suas decisões a respeito da saúde.

Ela rejeita a hipótese de que os consumidores não entendem que estão concordando em compartilhar seus dados, chamando a atenção para um documento de autorização “muito explícito” que pergunta se a pessoa consente a realização da pesquisa e se permite que seja compartilhada com terceiros.

O ponto fundamental, diz ela, é que a pesquisa depende de os clientes responderem a perguntas de um questionário.

“A informação genética, se eles não fornecerem os dados do questionário… realmente não é interessante para nós. Portanto, eles não apenas autorizam conscientemente, como também participam afirmativamente desses estudos.”

Hibbs afirma que a parceria com a GSK vai permitir que um grupo muito maior de pesquisadores estude os dados que eles têm disponíveis. A empresa também vai poder trabalhar em parceria com acadêmicos e instituições públicas se não houver conflito de interesses com a companhia farmacêutica, acrescenta.

‘Bem maior’

Paralelamente, muitos países estão desenvolvendo bancos de dados de DNA públicos, em oposição aos privados que pertencem a companhias, como a 23andMe.

No Reino Unido, o projeto está sendo conduzido pela Genomics England, empresa criada pelo Departamento de Saúde e Assistência Social do governo.

A companhia lidera o Projeto 100 mil Genomas, que tem o objetivo de sequenciar o genoma de pacientes com câncer e doenças raras, assim como de seus familiares. Todos são atendidos pelo serviço público de saúde do Reino Unido (NHS, na sigla em inglês), e o foco está na melhoria do tratamento – e não no desenvolvimento de novos medicamentos lucrativos.

Mark Caulfield, cientista-chefe da Genomics England, diz que o projeto oferece diversos benefícios. Ele cita o exemplo de uma menina de 10 anos com catapora recorrente grave.

“Encontramos uma mutação no DNA dela que alterou o sistema imunológico. Isso nos permitiu optar pelo transplante de medula óssea e curá-la”, diz ele.

“Esta não é apenas uma transformação para o indivíduo, representa também uma grande economia do ponto de vista financeiro para o NHS, porque ela estava sendo internada periodicamente e recebendo cuidados intensivos.”

Ele destaca que o genoma pode ajudar a elaborar uma imagem muito mais detalhada do curso de vida de uma pessoa – algo que pode ajudar os cientistas a identificar quem corre risco de contrair certas doenças.

Todos que fazem parte do banco de dados aderiram com base no chamado consentimento informado, que prevê a distribuição de material informativo impresso e consulta com profissional de saúde.

A Genomics England trabalha em parceria com outros países e empresas privadas, algo que Caulfield vê como positivo.

Quando um paciente sofre de uma doença muito rara, obter uma resposta pode depender do compartilhamento de dados com outros países. Em paralelo, dialogar com empresas privadas que estão desenvolvendo medicamentos pode ajudar a baratear um processo extremamente caro.

“Muitos de nós têm o risco de ter uma reação adversa por causa da nossa constituição genética. E como 80% dos medicamentos falham durante o desenvolvimento, usar o genoma para tentar obter drogas mais seguras na primeira tentativa pode reduzir o custo desses remédios quando eles chegam ao sistema de saúde”, explica.

Ele destaca o papel fundamental que a identificação do gene responsável pelo colesterol hereditário, condição que leva ao desenvolvimento precoce de doenças cardíacas, desempenhou no desenvolvimento da droga para seu tratamento.

“A Amgen [empresa farmacêutica] estima que o trabalho com o genoma encurtou o desenvolvimento desse medicamento em três anos. Se eu puder fazer algo capaz de evitar a morte ou a dor de alguém mais rápido por meio desta parceria público-privada, então eu acho que é um bem maior para a sociedade.”

Por que a diversidade é importante

Vale a pena destacar que o Projeto 100 mil Genomas sequenciou exatamente esse número. É apenas uma pequena fração da quantidade de informações armazenadas no banco de dados da 23andMe.

O fato de as empresas privadas dominarem os bancos de DNA preocupa Kayte Spector-Bagdady, professora assistente da faculdade de medicina da Universidade de Michigan, nos EUA.

“Há potencial para o monopólio de dados e também para o setor privado agir de maneiras que possam excluir os bancos de dados públicos”, diz.

Ela cita o exemplo da Myriad Genomics, que chegou a obter a patente de dois genes associados ao aumento do risco de câncer de mama e de ovário.

Isso significa que a empresa poderia monopolizar os testes, algo que teria o potencial de restringir as pesquisas científicas e impedir o desenvolvimento de testes mais baratos – conforme argumentaram seus concorrentes.

Em 2013, a Suprema Corte dos EUA declarou a patente inválida. Mas como a Myriad deteve o monopólio por tanto tempo, conseguiu o melhor conjunto de dados.

Agora, diz Spector-Bagdady, terceiros estão trabalhando juntos para “competir com o gigantesco banco de dados da Myriad”.

Ela alerta ainda que as perspectivas de lucro podem distorcer as pesquisas.

“Se você pensar em empresas como a 23andMe, seu valor não se baseia na capacidade de vender kits de teste de DNA de US$ 200; é baseado na capacidade de coletar e vender dados. Esses dados são um dos seus maiores ativos comerciais, e esse ativo é protegido como qualquer outro ativo seria.”

Questões de consentimento à parte, sua maior preocupação é que a forma como os dados são coletados significa que alguns segmentos da sociedade não estão representados.

“As pessoas que têm condições de comprar esses testes de diagnóstico privados são parecidas de várias maneiras – elas geralmente têm alto grau de instrução, costumam ser caucasianas e ter boa condição financeira”, diz ela.

“Então, quando povoamos bancos de dados privados com pessoas deste perfil, mesmo que façamos uma boa pesquisa que seja responsável por excelentes avanços na medicina, as comunidades às quais esses avanços serão aplicáveis são de pessoas com o perfil daquelas que estão no banco.”

Ela acredita que a criação de bancos de dados públicos, acessíveis aos pesquisadores, com uma diversidade maior, como o programa de pesquisa All of Us, introduzido pelo governo do ex-presidente Barack Obama, beneficiaria mais a sociedade.

“O desafio é que eles só têm cerca de 150 mil pessoas até agora e fazem isso há anos”, diz ela.

Parte do problema é que os programas públicos precisam atender às rigorosas exigências do governo em relação ao consentimento, tornando mais caro e demorado recrutar participantes.

A 23andMe afirma que, apesar de sua base de clientes ser, em termos percentuais, mais europeia, em números absolutos reúne um dos maiores grupos de populações tradicionalmente sub-representadas em pesquisas, incluindo afro-americanos, latinos, entre outros.

Além disso, a empresa diz que participa de projetos que focam especificamente em lacunas nos registros genéticos.

O mercado de testes de análise de DNA voltados diretamente para o consumidor está prosperando, observou um relatório da consultoria KPMG no ano passado.

Sendo assim, a expectativa é que o debate em torno de questões como privacidade, consentimento, diversidade e benefícios se aprofunde cada vez mais, à medida que mais gente decide desvendar sua genética.

* Este artigo foi adaptado para a BBC Capital por Philippa Fogarty a partir do episódio ‘Who’s monetising your DNA?’ (Quem está monetizando seu DNA, em tradução livre) do programa ‘Business Daily’ da rádio BBC World Service, apresentado por Manuela Saragosa e produzido por Laurence Knight.(BBC)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *