Geral

Até que ponto você determina?

A pergunta é de foro íntimo. Provavelmente umas das questões mais individuais com a quais um ser humano pode se deparar: até quando permitirei a utilização dos recursos terapêuticos para adiar minha morte?

Os recursos terapêuticos têm mais do que adiado a morte; têm oferecido a chance de vida longa e com qualidade à boa parte da população.

Os exames preventivos, mesmo na rede pública de saúde –no caso de doenças como a hipertensão, prevenção ao câncer de mama, útero e próstata, para ficar nesses exemplos -, e os tratamentos correspondentes têm impacto importante na saúde pública. Hoje em dia, o “cuidar de si” é uma questão de bom senso. O mesmo bom senso que deveria vigorar na resposta para a pergunta acima; mesmo que a decisão seja a última, a derradeira.

Mas, obviamente, nada é tão simples quanto parece. Diante de um paciente em estado terminal, pelo menos três pontos de vista somam-se. O do médico, o do paciente e o dos parentes do paciente. E eu escrevi “pelo menos” porque, ao sair da esfera individual, temos justamente o ponto de vista legal – que, claro, interfere em todos os âmbitos –, e o social.

Para se ter uma ideia do quanto essa discussão é antiga, desde a Grécia ela se impôs aos filósofos. Platão e Sócrates, por exemplo, eram a favor do suicídio no caso de doença dolorosa e irreversível. Já Aristóteles condenava a eutanásia. Até hoje, compêndios médicos e de direito discutem a questão.

O certo é que bastou falar sobre abreviação de sofrimento e as pessoas já pensam em eutanásia, palavra de origem grega que significa “a boa morte”, e apesar de significado tão bonito, a palavra mais assusta do que conforta os envolvidos no drama de um paciente terminal.

Para começar, a eutanásia sempre foi e ainda é proibida no Brasil. Entretanto, novas denominações vêm à tona no âmbito do biodireito e da bioética, justamente para que se entenda todo o contexto ético e social em que a situação está inserida. Quais seriam essas palavras? Ortotanásia, distanásia e mistanásia.

Existe, ainda, uma prática médica pouco conhecida entre nós, cuja denominação – simples e direta – nos assusta um tanto: é o suicídio assistido. Vamos entender cada uma delas? De imediato, é fácil perceber: três dessas palavras contêm o sufixo “tanato”, do grego “thanátos”, que significa morte.

A conhecida eutanásia é a prática de antecipar a morte de alguém que está em estado terminal e em sofrimento. Basicamente trata-se de ministrar uma droga para abreviar a morte.

É proibida no Brasil, como já dito acima, e na maioria dos países. É permitida legalmente na Holanda, Bélgica e Luxemburgo. Na Suiça, é permitido o suicídio assistido; inclusive, pessoas de outros países para lá se dirigem com esse objetivo. Em três estados norte-americanos – Montana, Oregon e Washington – o suicídio assistido é legalizado, mas ainda não reconhecido como direito constitucional.

A diferença entre eutanásia propriamente e o suicídio legal é que, no primeiro, é o médico quem ministra a substância letal. No segundo caso, é o próprio doente quem faz o procedimento, com supervisão médica. Essa modalidade de abreviação da vida também é proibida no Brasil.

Agora, imagine a situação totalmente oposta: uma obsessão por resultados ideais, ou ainda, uma “obstinação terapêutica”: é a distanásia; palavra de origem grega que pode significar algo como “uma morte ruim”. Por força da própria profissão, ou porque os parentes assim o desejam, os médicos aplicam todos os recursos tecnológicos disponíveis – seja por meio de remédios ou aparelhos – numa dimensão além do normal e que acaba por causar mais sofrimento ao doente.

Esse tipo de prática já foi desaconselhada pelo Código de Ética do Conselho Federal de Medicina, em 2010. Segundo esse mesmo código, deve-se evitar exames ou tratamentos desnecessários aos pacientes em estado terminal e, por outro lado, deve-se, isso sim, usar todos os recursos disponíveis para minorar a dor e o sofrimento do doente.

Certa evolução nessa direção leva à ortotanásia, cuja palavra significa “a morte correta”. Tem relação com uma morte natural, sem interferência da ciência, preservando a dignidade do ser humano.

Também é uma contraposição à distanásia e não se refere, absolutamente, à abreviação da morte, como na eutanásia, mas sim, a de não fazer esse sofrimento estender-se por meios artificiais. De certa forma, ela já é praticada nos hospitais, quando médicos e parentes chegam à conclusão de que nada mais existe que possa resultar na verdadeira recuperação do paciente terminal.

Percebe-se que esses termos todos se interligam, e que, na prática, é bem sutil o que os diferencia. Entretanto, as instituições não se cansam de discutir o assunto e não é para menos. Basta dizer que, sem muita lenga-lenga, os planos de saúde já se pronunciam, mostrando o quanto desperdiçam de recursos com tratamentos inúteis! Ora, não é e não deve ser esse o parâmetro para a discussão. Por aí, dá para imaginar o tamanho do perigo se as leis são elaboradas sem a cautela necessária.

Chegamos, então, à mistanásia que, de certa forma, diz respeito a todos nós, que estamos bem vivos. A palavra significa “morte inadequada”, mais precisamente, uma morte abandonada.

Refere-se a milhares de pessoas que vivem sem qualquer assistência, jogadas à própria sorte e que acabam por morrer em função da miséria ou por falta de socorro.

Lembrou-se das imensas filas em hospitais ou omissões de socorro? Pois é bem por aí. A palavra está relacionada à incompetência administrativa, especialmente dos serviços públicos de saúde. E mais: na civilização atual, pode-se dizer que muitos de nós praticamos a mistanásia, em cujo cerne está a indiferença. A mistanásia também é chamada de “eutanásia social”.

Bem, o fato é que, como que a trilhar o caminho do meio, a justiça brasileira acaba por “oficializar”, digamos assim, o direito do cidadão a decidir se, diante de doença terminal e irreversível, quererá uma morte natural ou a adoção de medidas extremas. É a possibilidade do chamado “testamento vital”, é a sua vida em suas mãos.

**As opiniões expressas em artigos são de exclusiva responsabilidade dos autores e não coincidem, necessariamente, com as do Diário do Comércio (DC)

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