As diferenças – e semelhanças – entre o separatismo do sul do Brasil e o da Catalunha
Enquanto o governo espanhol tenta suprimir a insurgência da Catalunha, no Brasil um grupo de separatistas se mobiliza para fazer um plebiscito pela “independência do sul” nas eleições de 2018. O que esses grupos em contextos tão distintos podem ter em comum?
Na última sexta-feira, o governo espanhol anunciou que, pela primeira vez na história democrática do país, assumirá o controle direto sobre a Catalunha, em reação à declaração de independência feita uma hora antes pelo Parlamento catalão. O premiê espanhol, Mariano Rajoy, anunciou a destituição da liderança catalã, a dissolução do Parlamento regional e a convocação de eleições locais para 21 de dezembro.
A “independência” da Catalunha havia sido aprovada em um controverso plebiscito em 1º de outubro não reconhecido pelo governo espanhol. Pouco mais de 2 milhões de pessoas (43% do eleitorado) votaram. De acordo com cálculo do próprio movimento, 90% dos votantes foram a favor da independência. A região tem 7,3 milhões de habitantes.
No fim de semana seguinte, a cerca de 8 mil km de distância dali, uma outra votação foi convocada para saber a opinião da população sobre separar outra região, desta vez no Brasil. A organização “O Sul é Meu País” realizou uma consulta informal nos Estados de Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná sobre a possibilidade de se separar do resto do Brasil, o chamado Plebisul.
O grupo ficou nacionalmente conhecido no começo do ano com a circulação de um “mascote” do grupo chamado Sulito, que virou alvo de piada nas redes sociais. A organização do Sul é Meu País afirma que Sulito foi uma “brincadeira de internet” e não é o mascote oficial do grupo, apesar de reconhecer que ele ajudou a divulgar a ideia.
Sulito
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Apesar de ter divulgado ideia do grupo, Sulito não é mascote do O Sul é Meu País (Crédito: O Sul é Meu País)
Na consulta, os participantes deveriam responder à pergunta “Você quer que o Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul formem um país independente?”.
Para realizar o processo, foram espalhadas urnas em locais públicos em cerca de 900 cidades dos três Estados com um custo de R$ 25 mil, segundo o próprio grupo.
A expectativa era a participação de ao menos 1 milhão de pessoas. Em 2016, 616 mil eleitores participaram do mesmo plebiscito. No dia 7 de outubro, porém, 340 mil pessoas responderam à pergunta e 95,74% disseram ser favoráveis à separação. Isso corresponde a menos de 2% do número de eleitores nos três Estados, que é de 21 milhões, segundo o Tribunal Superior Eleitoral.
Diferenças
A participação modesta do separatismo sulista é considerada uma das principais diferenças entre os dois movimentos, segundo especialistas.
“Não consigo ver um movimento sério com menos de 2% dos eleitores participando, na Catalunha foi 43%”, diz Luis Augusto Farinatti, professor de História da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) especializado em fronteira sul do Brasil.
“Não vejo esse sentimento separatista difundido, sério, engajado no Sul como o da Catalunha, que vem há muito tempo, foi alimentado pelo regime franquista e agora estourou. Aqui, a reativação do separatismo é um reflexo de movimentos mundiais, mas é um pálido reflexo”, explica.
“O movimento do sul do Brasil ainda é muito fraco, quase simbólico e anedótico, com uma participação de 300 e poucos mil sulistas em uma população estimada de 30 milhões, tem muito pouco impacto”, diz Paulo Velasco, professor de Política Internacional na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).
Celso Deucher, um dos fundadores do Sul é Meu País, defende a validade do Plebisul e diz que a menor participação em relação a 2016 se deve ao fato de que neste ano foi pedido que os participantes assinassem um Projeto de Lei de Iniciativa Popular (PLIP) para propor um plebiscito consultivo junto às eleições de 2018 sobre o tema “independência do Sul”. “Acreditamos que a população do sul de fato apoia a proposta”, disse à BBC Brasil.
Deucher afirma que a organização foi criada em 1992 em Laguna (SC), “terra da Anita Garibaldi, uma terra especial para nós do sul”, diz. Anita foi companheira do guerrilheiro italiano Giuseppe Garibaldi – ambos lutaram pela independência de diversos Estados na península itálica e também na Guerra dos Farrapos.
Ele também rejeita a acusação de que movimentos separatistas do sul do país se baseaiam em discursos xenófobos e/ou racistas que defendem algum tipo de superioridade do “povo sulino” com base na forte imigração europeia na região. Segundo Deucher, o Sul é o Meu País é contra qualquer tipo de discriminação.
“Existe uma diferença cultural [do sul em relação ao resto do país], mas nunca defendemos questões étnicas. Nós não temos problema com povo nenhum do Brasil, o nosso problema é com Brasília”, diz.
“A nossa identidade é mais no sentido de que nos consideramos povo e portanto somos nação, se somos nação, temos direito a criação de um Estado que nos represente. O Brasil nunca foi nação, sempre foi um Estado. Se o Brasil se considera nação, porque o Sul também não pode?”, defende Deucher.
Em um artigo publicado no The International Journal of Human Rights sobre os aspectos legais e econômicos dos movimentos separatistas do sul e do sudeste do Brasil, Alexandre Andrade Sampaio, advogado mestre em Sociologia de Direitos Humanos pela London School of Economics (LSE) afirmou que as pessoas dessas regiões não podem ser consideradas povos e, portanto, não teriam legitimidade para exigir a separação.
“O direito internacional, segundo nossa interpretação [dele e do coautor do estudo Luís Renato Vedovato], reserva o direito de autodeterminação para povos. Não estou dizendo que não existam povos no sul, mas a argumentação de que existe um povo uníssono é falha”, disse à BBC.
“A lei internacional que fala sobre autodeterminação possibilita de forma muito mínima a separação em casos muito extremos de completo desrespeito às vontades políticas de povos ou em caso de sistemática violação de direitos humanos”, explica.
“Você começa a falar de culturas diferentes querendo se desvencilhar de estados e formar novos por interesses puramente econômicos. Todas as regiões poderiam fazer isso apenas por ter culturas diferentes, criando um regime internacional extremamente xenófobo, separatista sem equiparação de padrões de vida”, afirma
Sampaio argumenta que a separação do sul do país pode ser considerada inconstitucional e ilegal. “O Estado é composto pela indivisão dos Estados”, diz. “O Supremo Tribunal Federal (STF) entende que povo é população brasileira. A separação do Estado só pode ser feita por um povo”. “As pessoas têm o direito de se expressar, eu não vejo ilegalidade no sentido de liberdade de expressão, mas se for se basear no sentido constitucional, o movimento é inconstitucional”.
Para Paulo Velasco, professor de Política Internacional na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), a questão cultural não é uma base forte para o ideal separatista do sul do Brasil.
“A grande diferença entre os dois movimentos é que no sul do país não há um sentimento de unidade em termos culturais, é uma região formada de contribuições muito diversas, muitas vezes de imigrantes, não há uma unidade cultural linguística como há na Catalunha”, disse à BBC.
Semelhanças
Isso não quer dizer que os dois grupos não tenham nada em comum. Deucher, por exemplo, vê semelhanças e diz que o grupo não apenas pode ser comparado com o da Catalunha como o apoia.
“A comparação nossa com a Catalunha é que o sonho deles é o mesmo que o nosso, certo? Transformar-se em um Estado independente para poder atender às demandas do seu próprio povo”, diz.
“Nesse sentido, estamos unidos com Catalunha, Quebec, Escócia, vários outros movimentos do mundo que conhecemos, temos parceria”, acrescenta.
Semelhanças
Velasco também vê similaridades nos argumentos de ambos.
“Os movimentos separatistas e nacionalistas mundo afora têm um forte componente econômico, todos eles”, diz.
“A semelhança principal está numa dimensão econômica, na Catalunha há uma base econômica muito forte, não é por acaso que tenha acontecido na esteira da crise que a Espanha tem passado há alguns anos. O movimento do sul do Brasil também se vale de um argumento econômico, eles se sentem desprezados em termos fiscais pelo governo federal, alegam que estariam melhor economicamente separados do Brasil”, completa.
A questão dos impostos é parecida em ambos. Os catalães dizem que pagam mais impostos proporcionalmente do que recebe em troca por meio de benefícios. A Catalunha é uma região rica em comparação com o resto da Espanha. Ela tem 16% da população do país, mas representa 19% do Produto Interno Bruto (PIB, soma de riquezas produzidas por um país) espanhol e mais de um quarto das exportações.
Já a região sul do Brasil tem uma participação de 16,2% no PIB, metade da de São Paulo, Estado responsável por um terço da economia brasileira. Mas o argumento tributário é semelhante.
“A União leva 82% de tributo e fica com ela, não aparece mais aqui, a desculpa é que é para mandar para lugares mais pobres do Brasil, mas isso não acontece, quando acontece vai para obras das oligarquias”, diz Deucher.
“Os três Estados do sul são colônia de Brasília, continuamos tendo esse colonialismo interno, uma instituição que só tira dinheiro da população e não devolve o serviço”, acrescenta.
Alvo: Brasília
O principal alvo do Sul é Meu País, segundo seu porta-voz, é o governo federal.
“Estado mínimo é um dos princípios que acreditamos, quanto menos Estado se metendo na economia, mais próspero é o país”, defende Deucher.
“Temos princípios liberais, desde o trabalho até questões familiares. Liberalismo é o único sistema que defende minorias, onde é possível que minorias possam se expressar”, acrescenta.
Na Catalunha, por outro lado, a coalizão independentista é formada majoritariamente por partidos de centro, centro-esquerda e extrema-esquerda.
Outra palavra repetida por ambos é “autonomia”.
A situação atual da Espanha começou a ser desenhada em 2010, quando o país vivia uma profunda crise econômica. Quatro anos antes, os catalães haviam aprovado em plebiscito um estatuto que definia a Catalunha como uma nação dentro da Espanha.
Em meio à crise, porém, o conservador Partido Popular apresentou um recurso no tribunal constitucional espanhol retirando boa parte dessa autonomia e proibindo o uso da palavra nação. Isso levou milhares de catalães às ruas de Barcelona e, a partir daí, a luta pela independência ganhou força.
O Sul é Meu País também exige mais autonomia.
“A constituição estadual não pode legislar sobre praticamente nada, não há autonomia, não é federação. Por exemplo, Santa Catarina se quisesse ter pena de morte, ela não pode ter porque a Constituição Federal veda. É um Estado Unitário disfarçado de federação”, diz Deucher.
Em termos de história, Deucher comenta a supressão de línguas faladas no sul durante a ditadura de Getúlio Vargas. Sob o regime do general Franco, na Espanha, o catalão foi proibido ao longo de 40 anos.
“Na década de 1940, durante a Segunda Guerra, o Brasil tomou uma atitude drástica contra nós do sul que foi nos proibir de falar a língua de nossos antepassados, seja ela guarani, alemão, seja qual for”, diz o cofundador do grupo.
“Fomos forçados através do sistema educacional e da proibição das línguas a virar brasileiros na marra, não tinha como ficar no país e não assumir o português”, acrescenta.
O historiador Luis Augusto Farinatti vê algum sentido nessa comparação – com ressalvas.
“Há semelhança no sentido de repressão de particularismos locais, só que as línguas alemã, russa, polonesa, italiana não eram uma língua difundida nesses três Estados, elas estavam em diversos pontos localizados. Não dá para dizer que os habitantes desses Estados falavam essa língua de uma maneira geral.”
“A única semelhança que eu vejo é de ser uma região que se acha mais rica e desfavorecida na questão da riqueza que gera. Na questão da construção histórica de busca de autonomia, o sul não tem uma base de identidade nacional construída no século passado ou retrasado, como é o caso da Catalunha há muito tempo”, conclui.(BBC)