Tem alguém na família com uma doença rara?
Todo ano, dia 28/2, é celebrado o Dia Internacional das Doenças Raras. Mas afinal, o que são doenças raras?
De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), doenças raras são definidas como aquelas que têm uma prevalência menor do que 65 casos por 100.000 habitantes. Na Europa, uma doença é considerada rara se afeta menos do que uma em cada 2.000 pessoas, e nos EUA, se afeta menos do que 200.000 pessoas no país em um determinado momento.
E no Brasil? Infelizmente não há dados epidemiológicos sobre a prevalência dessas doenças no Brasil, mas, como em países que dispõem desses dados o grupo representa cerca de 7% da população, podemos estimar que cerca de 15 milhões de brasileiros tenham uma doença rara. Para se ter uma ideia do que este número representa em um país continental como o Brasil, imagine se todas as pessoas que residem no Estado do Rio de Janeiro tivessem uma doença rara.
Só um subgrupo destas doenças raras, as anomalias congênitas, afeta cerca de 4% de todos os nascidos vivos, e, portanto, é, há 30 anos, a segunda maior causa de mortalidade infantil no Brasil. Mesmo assim, até hoje, o Brasil não tem implantada uma Política de atendimento aos pacientes com doenças raras.
O número total de diferentes doenças raras excede 8.000 e cerca de 80% delas são de causa genética. Mesmo entre os 20% que não são de causa totalmente genética, em muitas delas, o componente genético é importante.
Quais são as características de uma Doença Rara?
- Podem atingir qualquer família e 75% delas se manifestam ainda na infância;
- São caracterizadas por uma ampla gama de sinais e sintomas que variam muito, não só de doença para doença, mas até entre pessoas que têm a mesma doença rara e entre afetados na mesma família. Isso leva ao atraso no diagnóstico, ou ao diagnóstico errado e até à falta de diagnóstico, e consequente atraso no início dos tratamentos ou tratamento errado ou falta de tratamento;
- Frequentemente são incuráveis e a grande maioria sequer tem tratamento específico, sendo que os cuidados incidem, sobretudo, na melhoria da qualidade e expectativa de vida;
- São geralmente crônicas, progressivas e potencialmente fatais. Metade dos pacientes com doenças raras morrem antes de completarem cinco anos de idade. Não só a sobrevida em geral é menor, mas também a qualidade de vida é afetada. Esse quadro pessimista pouco a pouco vai sendo modificado pelos enormes avanços da Medicina, que tornam cada vez mais compatível uma vida longa e muito próxima do normal. Mas, para isto, o diagnóstico tem que ser precoce, correto e devem existir tratamentos acessíveis à população.
Independente de qual das 8.000 doenças raras a pessoa tenha, os obstáculos são muito parecidos
- Falta de conhecimento científico, médico, das autoridades públicas e da população em geral sobre as doenças raras, levando à dificuldades de diagnóstico clínico e laboratorial. A grande maioria dos casos nem chega a ser diagnosticado ou tem diagnóstico tardio;
- Ausência completa de dados epidemiológicos e consequentemente de políticas públicas. A falta de uma política de saúde pública particularizada às doenças raras é uma vergonha dos sucessivos governos brasileiros;
- Desinteresse da indústria farmacêutica em desenvolver medicamentos que teriam potencial de tratar estas doenças raras e também de promover pesquisa científica no Brasil;
- No Brasil, quem tem uma doença rara enfrenta também o desafio do número reduzido de profissionais especializados em doenças raras (a especialidade de médico geneticista é a que tem menor número de profissionais no Brasil) e a escassez de centros de referência para diagnóstico e tratamento;
- Problemas de acesso aos planos de saúde, que muitas vezes consideram que os pacientes com doenças raras têm doenças pré-existentes e impõem obstáculos nas contratualizações e coberturas;
- Insensibilidade dos órgãos governamentais às peculiaridades das pesquisas científicas necessárias, assim como às nuanças que deveriam fazer com que a aprovação e o acesso aos medicamentos órfãos tivessem critérios diferentes daqueles que são rotineiramente utilizados para avaliar a incorporação, no sistema de saúde público, de medicamentos para doenças frequentes. Um exemplo: a Anvisa exige, através de seu “Programa de Fornecimento de Medicamento Pós-Estudo”, que o fornecimento de medicamentos após o término de um ensaio clínico (período de pesquisa) seja disponibilizado gratuitamente aos sujeitos da pesquisa. Até se compreende que esta exigência vem de encontro à preocupação de garantir a segurança e os direitos dos sujeitos de pesquisa. Porém, este é um bom exemplo de como as normas para doenças raras merecem considerações diferentes das normas para doenças frequentes (equidade). Esta regra da Anvisa inibe que as indústrias farmacêuticas façam estudos clínicos para medicamentos de doenças raras no Brasil, pois como a grande parte dos raros pacientes que tem aquela doença já farão parte da pesquisa, e terão acesso gratuito ao medicamento para sempre, a indústria praticamente não terá para quem vendê-los após o término da pesquisa, caso sejam comprovadamente seguros e eficazes. Por outro lado, o Brasil pouco investe na indústria farmacêutica local para desenvolvimento de medicamentos. Em resumo, não produz localmente e cria obstáculos para os que vêm do exterior. Quem quis proteger os doentes que participam de pesquisas, acaba por prejudicá-los.
- Quando são diagnosticados, a necessidade de cuidados especiais, com múltiplos profissionais de saúde, diferentes do que ocorre com a maioria das doenças mais frequentes, piora o que já era desigual e amplia os entraves ao atendimento médico já rotineiros para quem tem uma doença frequente; pior ainda para quem tem uma doença rara;
- Mesmo quando o diagnóstico correto é feito, pacientes podem viver por muitos anos em condições precárias e sem atenção de saúde especializada e multiprofissional. Podem ser, literalmente, excluídos do sistema de saúde, a não ser que tenham condições de viajar para as capitais de seus Estados – 99% dos municípios brasileiros não têm atendimento especializado para doenças raras;
- Nas poucas doenças raras para as quais existem medicamentos específicos, em geral estes são muito caros e inacessíveis ao cidadão brasileiro. Some a isto a falta de benefícios sociais e a procura desenfreada das famílias por uma cura (muitas vezes de forma inadvertida), e uma das consequências será a pauperização ainda maior destas famílias, aumentando dramaticamente a iniquidade do acesso aos cuidados para pacientes com doenças raras;
- Muitas doenças raras se repetem nas famílias porque são hereditárias. Todas as dificuldades aqui relatadas se multiplicam quando há mais de um caso na mesma família. A falta de investimento em serviços de aconselhamento genético faz com que tenhamos no Brasil inúmeros casos de vários irmãos com a mesma doença rara, sem que os pais sequer tenham tido a oportunidade de serem orientados sobre o caráter hereditário. Até porque, muitas vezes, não é feito o diagnóstico ou é feito tardiamente quando vários filhos já nasceram;
- As famílias de pacientes com doenças raras têm consequências sociais peculiares. Viver com uma doença rara traz implicações em quase todas as áreas sociais, entre elas na escolaridade, na escolha de uma futura profissão, na escolha de se casar e ter ou não filhos, no tipo de lazer permitido, na sociabilidade e integração com pessoas saudáveis da mesma idade. Não é infrequente que leve ao isolamento, exclusão social, preconceito, discriminação, problemas com seguros (de vida, viagens, saúde, etc) e redução das oportunidades profissionais;
- Além dos pontos descritos acima, não é incomum ouvir de pessoas com doenças raras que, de alguma maneira, conseguem conciliar tratamento e vida social/profissional a respeito da imensa dificuldade que encontram para explicar para os seus círculos de convívio o que se passa consigo, do que se trata sua doença, o porquê da necessidade de tantos tratamentos e/ou medicações, além da luta diária contra a estigmatização e o preconceito. Apesar do empenho que a maioria demonstra para levar a vida próximo do normal, há também relatos de dificuldades na inserção do tratamento na rotina, considerando a quantidade de tempo necessária para executar o tratamento completo;
Os enormes obstáculos acima descritos trazem imensuráveis impactos psicológicos aos afetados e seus familiares. O fato de não existirem ainda curas eleva ainda mais o sofrimento, a dor e o sentimento de vulnerabilidade destes pacientes e suas famílias, além do “sentimento de culpa” descrito por muitos pais. Não é por acaso que muitas vezes o nascimento ou os obstáculos nos cuidados de um filho com uma Doença Rara leva a separação dos pais, o que torna a situação ainda mais dramática para os afetados.
A somatória destes fatos leva a um grande fardo financeiro às famílias de pacientes com doenças raras e também ao sistema de saúde do país, até porque, diante da omissão do Estado, o acesso ou não ao atendimento de Saúde de quem tem uma doença rara e nasceu no Brasil, é atualmente quase sempre regulamentado via judicialização.(Veja)