Marajó, a biodiversidade perdida
Vinte anos atrás, a região do rio Canaticu, município de Curralinho, no Marajó, era um lugar de “muito peixe e muita caça”, como contam os moradores mais antigos. Hoje a situação “é triste”, não tem peixe no rio, o camarão está quase acabando e não se encontra mais animais nas matas. Foram duas décadas de pesca predatória e caça de tudo o que se mexia nas matas.
“Dias atrás um cara matou 18 tatus, todos os que existiam aqui”, denuncia Raimundo Ferreira, de 77 anos, que fala de um tempo em que tinha de tudo na região, jabuti, jacaré, veados, caça farta. Vicente de Paula Ferreira de Oliveira, morador antigo, conta que o fim dos peixes começou com a “malhadeira”, uma rede de malha fina que os ribeirinho esticam de margem a margem nos rios e igarapés do Marajó. Anos de pesca predatória, capturando peixes que subiam o rio para desovar na piracema, praticamente acabaram com a presença de grandes peixes como o Tucunaré e o Pirarucu no rio Canaticu, um curso d’água pequeno para os padrões amazônicos, mas que despeja no rio Pará o equivalente a quase 50 rios Tietê.
Além da malhadeira os ribeirinhos também usaram o Timbó, um cipó tóxico que afeta os peixes quando moído e lançado nas águas dos rios e lagos. Vicente de Paula lembra-se de um tempo em que os peixes eram fartos e tinha muita caça. “Hoje a mesa do ribeirinho só tem frango, mesmo assim quando dá para comprar, porque aqui na região pouca gente tem chão firme para criação”, explica. No entanto nem tudo é desgraça nesse sertão do arquipélago do Marajó, a renda principal das famílias vem do açaí, que nos poucos meses de colheita, no segundo semestre, chega a render até 30 reais por rasa (um cesto que serve como medida para a venda do produto). Uma família pode chegar a fazer perto de 50 mil reais em uma safra. “Pena que o dinheiro some rápido”, explica Vivian Marília da Silva Oliveira, ativista ligada ao Instituto Peabiru, organização que vem trabalhando pela recuperação dos estoques pesqueiros na região do Canaticu. Ela explica que a falta de acesso a serviços bancários faz com que não se construa uma poupança na época da safra.
A história da região é moldada pela exploração desmesurada dos recursos naturais. O próprio açaí quase desapareceu quando seu palmito passou a ser cobiçado para substituir o palmito da palmeira Jussara, que teve sua coleta proibida nas regiões de Mata Atlântica. Paulo Ronaldo, secretário de Pesca e Aquicultura de Curralinho conta que anos atrás a exploração do palmito de açaí praticamente acabou com as plantações. “Vieram fábricas para explorar e exportar o palmito de açaí para o sul, sem nenhuma preocupação de replantio”, conta. No fim, foi apenas um curto ciclo e exploração que deixou a região ainda mais pobre. O crescimento dos mercados de Açaí fora do Pará deu um novo fôlego para a região, que conseguiu replantar os açaizeiros e começar uma nova e rentável atividade econômica.
No entanto, essa atividade também tem seus problemas. João Meirelles, diretor do Instituto Peabiru, organização voltada para o desenvolvimento de comunidades locais, são muitos os acidentes na colheita do açaí, inclusive com crianças. “Há muitos casos de quedas de cima das árvores, que causam traumas e até mortes”, explica Meirelles. Para ele ainda mais grave é a utilização de crianças nessa colheita, uma vez que a palmeira do açaí é bastante frágil e muitas vezes não aguenta o peso de um adulto.
Às margens do rio Canaticu vivem 19 comunidades bastante organizadas, que buscam soluções para os dilemas do desenvolvimento da região. Além do trabalho cotidiano nas roças e na pesca, parte do dinheiro que ajuda a manter as famílias vem dos programas sociais, principalmente o Bolsa Família, que garante a presença das crianças em idade escolar nas salas de aulas, e da Bolsa Defeso, que garante renda no período em que a pesca é proibida por conta da reprodução dos camarões e dos peixes. No entanto, como a fiscalização nesses rincões do Brasil é muito difícil, muitas vezes o defeso não é respeitado, tornando-se mais um motivo para a perda da diversidade nos rios da região.
Mobilizar as comunidades e buscar um acordo pactuado entre os próprios moradores foi a solução que se encontrou para reverter o cenário de extinção de espécies na bacia do Canaticu. Durante quase um ano as equipes do Instituto Peabiru, queconseguiu apoio do Programa Petrobras Ambiental, percorreu todas as comunidades da região, congregações evangélicas e católicas, para estabelecer diálogos que possibilitaram a construção colaborativa de um “Acordo de Pesca”, onde todas as regras foram pactuadas pelos próprios ribeirinhos, garantindo assim o respeito às tradições e ao modo de vida local. “Não pode mais atravessar malhadeira no rio e nem capturar peixes e camarões que estão subindo para a desova”, explica Vicente de Paula. Ele conta que foram dezenas de reuniões e conversas entre os ribeirinhos e os técnicos do Peabiru, dentro de um programa chamado “Viva Pesca”, para construir um conjunto de regras que agora vai valer para todos. “Vamos ter de volta nosso pescado”, acredita Vicente.
A metodologia participativa utilizada na construção dos acordos é estruturante. “Não adianta chegar nessas pessoas e apontar a lei, é preciso que eles entendam o que está acontecendo com o ambiente em volta deles”, explica João Meirelles, do Peabiru. É um processo de diálogo, de identificação das lideranças locais e de respeito com seus valores. “Para eles animais são caça”, diz Meirelles, e não se pode simplesmente proibir, é preciso levar informação e muita conversa. Essa experiência pode ser replicada em muitos rios da região, que estão perdendo rapidamente sua diversidade graças a modelos muito agressivos de pesca e caça. (#Envolverde)