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O Pior dos Mundos

O Pior dos MundosMuita coisa mudou na política brasileira desde a redemocratização do País nos anos 1980. Temos eleições diretas, liberdades, direitos garantidos por uma nova Constituição. Os partidos, as instituições e a sociedade civil avançaram muito. Mas ainda herdamos e reproduzimos velhas deficiências e vícios – especialmente quando se trata das relações com os povos indígenas do País.
 
São 513 deputados federais e 81 senadores, mas nenhum deles representa os ocupantes de cerca de um oitavo do território brasileiro, um quinto de toda a Amazônia Legal, as terras indígenas, com quase 113 milhões de hectares. Um único indígena, o xavante Mário Juruna, conseguiu eleger-se deputado por um único mandato, entre 1983 e 1987.
 
No último dia 16 de abril, um grupo formado por centenas de lideranças indígenas vindas de todo o País conseguiu um feito notável: ocuparam o plenário da Câmara Federal e abriram negociações para participar diretamente das discussões sobre uma série de mudanças legislativas que os afetam de forma contundente, apesar de eles, anteriormente, nunca terem tido oportunidade de debatê-las.
 
O acontecimento chamou a atenção para um problema que tem tudo a ver com a situação vivida hoje pelos habitantes da região de Altamira (PA), onde se realizam as obras da Hidrelétrica de Belo Monte. O País precisa, urgentemente, aprender a dialogar com os povos indígenas, construir formas de incluí-los, de maneira efetiva, no debate democrático.
 
A situação hoje é definida como “o pior dos mundos” por um antropólogo que trabalha na região. Enquanto as obras de Belo Monte avançam a toque de caixa, a sociedade civil tem sérias dificuldades para ser ouvida, e os órgãos públicos penam para fiscalizar a execução das condicionantes previstas durante o processo de licenciamento da obra.
 
Se, para ganhar o direito de conversar na “Casa do Povo”, os líderes indígenas tiveram de passar, literalmente, por cima de dúzias de seguranças, o que podemos dizer do diálogo com as empresas privadas? A democratização do País, por vezes, parece não ter chegado às empreiteiras e estatais à frente das grandes obras de infraestrutura – algumas delas, sintomaticamente, sendo a retomada direta, ainda que em versão transformada, de projetos gestados durante a ditadura.
 
O atraso brasileiro nesse debate tem algo de canhestro. Dispomos, já, de um dispositivo legal avançado, ratificado pelo Congresso Brasileiro em 2002, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho. O acordo internacional estabelece, em seu artigo 6º, que os povos indígenas têm o direito de ser consultados, de forma prévia, a respeito de qualquer política, medida legislativa, ou empreendimento que os afete.
 
Apesar disso, Executivo, Congresso, Judiciário, empresas, todos parecem agir como se essa norma não existisse. No histórico julgamento que determinou a validade da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em 2008, o Supremo Tribunal Federal agregou à sentença uma série de 19 “condicionantes”, dentre as quais várias parecem ignorar completamente a 169. A portaria 303, da Advocacia-Geral da União, buscou “validar” essas regras em 2012, reiterando que o usufruto que os indígenas têm de suas terras (as quais são consideradas patrimônio da União pela Constituição de 1988) deve ser “relativizado”, em razão do “interesse nacional”, em casos como os de mineração, empreendimentos hidrelétricos etc. Nenhuma palavra há, nesse dispositivo, sobre a necessidade de consulta aos povos afetados.
 
O governo iniciou, em 2012, por meio da Secretaria-Geral da Presidência da República, um diálogo para regulamentar a Convenção 169, a fim de esclarecer, afinal, como devem ser realizados os processos de consulta previstos nesse instrumento. Não se tem notícia de que a discussão esteja avançando.
 
Hoje, a situação é caótica. Na Amazônia das grandes obras, empresas contratam consultorias que visitam as comunidades, organizando reuniões obscuras que, fotografadas e filmadas, são depois apresentadas nas disputas judiciais como “audiências públicas” em que se realizou, formalmente, a “consulta” a respeito de um dado empreendimento. Como já divulgado recentemente pela imprensa, essa prática ocorreu em Belo Monte, segundo o Ministério Público Federal, e há indícios de que esteja sendo utilizada no processo de planejamento das usinas a serem construídas no Rio Tapajós, no oeste do Pará.
 
Em meio a toda essa desorganização e desrespeito, a democracia vira uma externalidade. É mais barato e rápido encontrar qualquer um que se apresente como liderança de dada aldeia e concorde em assinar os papéis e receber dinheiro das “compensações” do que organizar um processo real de consulta, em que as pessoas mais sábias e experientes das comunidades – frequentemente, os mais idosos são os que menos falam o português – possam, a partir de um diálogo com técnicos isentos, conduzir seus patrícios a uma reflexão mais aprofundada sobre as consequências de longo prazo que alterações drásticas no meio-ambiente poderão causar.
 
A velha tutela não é, certamente, a solução. Da mesma forma que ali se encontram reclamações sobre a ausência do Estado na intermediação dos contatos com as empresas, em outras regiões há críticas a órgãos como a Funai quando eles assumem o papel de receber recursos antes de repassá-los aos indígenas. O respeito à autonomia das comunidades é uma questão-chave, como internacionalmente se reconhece – mas, o Estado e a sociedade brasileira estarão preparados para se relacionar com comunidades bem informadas, cientes de seus direitos e capazes de denunciar quaisquer desvios?
 
Ao aceitar conviver com práticas como as que CartaCapital denuncia na matéria Quanto vale um índio?, a democracia brasileira se apequena e expõe suas falhas. Quem tem poder para agir é o governo federal. Não é possível que a “doutrina do choque” continue guiando nossa política energética, com as obras reiteradamente sendo justificadas a partir da alegação de que, se não forem rapidamente feitas, sobrevirá um apagão. Em tempo de mudanças climáticas e intensificação de eventos extremos, não parece uma solução inteligente para o País – a não ser para quem está preocupado em ganhar dinheiro rápido, seja empreiteiro, político ou indígena.

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