Da RedaçãoSem categoria

O que as palavras não mostram

Você sabe o que é parinirvana?, perguntou o sujeito em voz alta, e todos os olhos se voltaram para ele no bar. Lembrei de um dicionário de sânscrito que havia comprado há uns dez anos e que pouco depois deixei esquecido no Brasil. Fiquei esperando a resposta e logo percebi que  havia três outros homens na companhia do autor da pergunta. 
 
O barman não mostrou interesse pelo assunto e já estava atendendo outro freguês, mas eu estava mordido de curiosidade, mesmo porque o grupo de quatro pessoas que pareciam indianos passaram a falar em voz baixa e deixavam escapar, de vez em quando, aquela palavra intrigante. Fiquei algum tempo remexendo o uísque mas afinal arrastei meu copo até perto deles e perguntei o que era, afinal, paranirvana. 
 
Eles se estreolharam e sorriram ao mesmo tempo. Um deles, que se disse chamar Ganesh, afirmou que não se tratava de nada misterioso mas apenas o modo como a escritura budista Nirvana Sutra chama o reino ou o estado de suprema felicidade em que mergulha aquele que encontrou a paz. 
 
Sim, eu conhecia mais ou menos essa nomenclatura budista-hinduísta-zen, que Deitaro Suzuki e Allan Watts trouxeram para o Ocidente via Califórnia, e que  declinou pouco a pouco até virar mera alavanca de auto-ajuda.
 
Os demais no balcão eram Chandra, Kamal e Ajit, todos levados da Índia para a costa oeste americana a fim de desenvolver programas de computadores. Depois  foram ficando por lá, porque aquilo que os unia era mais fácil de obter na América do que na Ásia – a paz, o silêncio, a liberdade de pensamento, governo sem o peso de uma religião. 
 
“Nada aproxima melhor o homem da religião do que a ausência de pregação, a indiferença ou a simples ausência de um credo na lei. Todo mundo pensa que é o contrário, sabia?”, pergunta Ganesh com um sorriso tímido. Kamal balança a cabeça: “Uma pensadora religiosa, Simone Weil, viu com clareza tudo isso, dizendo que gostava de conversar com ateus e livres pensadores porque eles partiam da dúvida, que é a alma da filosofia, e  conseguiam ver do que é feita a fé religiosa superficial, adotada para tranquilizar a mente e encerrar qualquer busca mais profunda”. O outro sujeito, Chandra, 
pronunciou de novo a palava paranirvana, para dizer que palavras menos conhecidas só servem para distrair a atenção de quem procura e de quem quer achar. Saber porque nos preocupamos tanto com as palavras, em vez de nos voltarmos para o que elas escondem, pode ser o melhor caminho. Por que quero saber o que é paranirvama? Talvez porque imagine que a palavra esconda alguma coisa fundamental que me trará alguma coisa vaga chamada Iluminação Espiritual, ou uma conversão mística mais vaga ainda, ou mesmo a libertação da angústia human, quem sabe?
 
Ganesh agora está sentado e  beberica seu chá verde gelado. Ele fala devagar e sua respiração revela cansaço: “As palavras foram feitas para designar coisas já conhecidas. 
O desconhecido é pagão, ainda não foi batizado e é sem nome. Falamos de Deus com familiaridade, mas quem o conhece? Um nome para muitos significantes nada é, além de sílabas e sons”, explica ele, de olhos baixos. Faz uma pausa e continua: “Há dez séculos, 
o teólogo Scotus Erígena afirmava que não podemos saber o que é Deus. Por isso se diz que Ele transcende o ser”. No bar onde estávamos, quem prestava atenção na conversa devia estar imaginando coisas a respeito da saúde mental dos quatro homens, o que piorava com o fato de todos exibirem um certo sotaque estrangeiro na fala. O que salvava as aparências era o aspecto respeitável desses que filosofavam em voz alta.
 
Após um longo silêncio não interrompido pelos presentes, a voz de Ajit se fez ouvir de novo: “Todo mundo se esquece de que o nome da coisa não é a coisa em si, sendo apenas uma marca identificadora. Lembram do provérbio chinês : ‘o dedo que indica a lua não é a lua’? 
 
É isso, o comum dos homens é distraído, e tudo o que ele busca mesmo é o prazer e 
a vitória sobre o outro, ainda que isso dure pouco. O que está por tras das palavras, do medo e do desejo não o interessa de todo”. 
 
Depois o silêncio chegou ali para ficar, e só foi interrompido pelo tilintar dos copos e o sussurro de  algumas vozes, agora hesitantes com o valor das palavras. Pelo menos por alguns minutos.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *