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Uma questão de bom senso

Fez bem a senhora presidente em recuar de sua sugestão de uma Assembleia Constituinte específica para efetuar a reforma política. E por diversas razões, a primeira delas porque a convocação de uma Assembleia Constituinte pressupõe uma mudança de regime político. Foi assim com a constituição de 1871, que substituiu a constituição monárquica, outorgada por Pedro I em 1824, por uma constituição que refletisse os valores republicanos de 1889.
 
Da mesma forma, a constituição de 1946 refletiu o regime democrático que substitui o ideário da ditadura Vargas. E a constituição de 1988 consagra o retorno à democracia, após o fim do regime militar. 
 
Simplesmente, não se reformam Constituições pelo simples desejo de endireitar algo que está torto, ou que se julga torto. Mudar o sistema eleitoral através de uma Assembleia Constituinte, em uma situação de plena normalidade democrática, é ideia esdrúxula e incompatível com a nossa tradição constitucional e não encontra amparo na letra da Carta Magna. 
 
Em segundo lugar, admitindo-se, mesmo que somente para efeito de argumento, que fosse possível fazê-lo, não haveria como controlar e restringir a Assembleia Constituinte a um único tema. 
 
Amparados pelos amplos poderes constitucionais, a Assembleia procuraria também mudar tudo o que entendesse incompatível com as novas realidades com que se defronta a Nação. Uma Assembleia Constituinte “específica” encontraria, simplesmente, maiores obstáculos do que a simples ideia de convocar uma Assembleia Constituinte genérica.
 
Terceiro, prosseguindo nesse tema, parece improvável que o Congresso abrisse mão de sua prerrogativa de efetuar qualquer mudança no arcabouço constitucional. E, menos ainda, que aceitasse conviver com uma Assembleia Constituinte paralela enquanto seus trabalhos continuassem a se desenrolar.
 
Quarto, ainda que tudo isso fosse possível, a proposição esbarraria em sua flagrante inconstitucionalidade. A necessária ação do Supremo Tribunal Federal poderia ser entendida como uma afronta à decisão popular em plebiscito e desenvolver-se uma crise entre os poderes da República.
 
Quinto, a proposição de tornar crime hediondo a prática da corrupção, aproada pelo Senado, é no mínimo inócua. Ora, crimes hediondos são aqueles praticados contra os bens protegidos pela Constituição – ou seja, os cometidos contra a vida, a honra, e os direitos fundamentais definidos como cláusulas pétreas da Constituição.
 
De acordo com o Código Penal, a corrupção pode ser ativa (artigo 333) ou passiva (artigo 316). A primeira refere-se ao agente corruptor e a segunda ao servidor público corrompido e caracteriza crime contra a administração pública. Ora, como o crime de corrupção não atenta contra os direitos fundamentais definidos na Constituição, é questionável sua classificação como hediondo. 
 
Se realmente se deseja cobrar a corrupção, típica do servidor público na ponta passiva, melhor seria tornar todos os servidores iguais perante a lei, não se admitindo um foro especial para os mais graduados servidores nos três poderes da República.
 
Talvez tivesse feito melhor a senhora presidente se reconhecesse que os cidadãos estão se manifestando porque existem causas concretas para o descontentamento. Não são apenas os 20 centavos de aumento no preço das passagens; é a percepção por todos que o aumento programado para janeiro foi apenas postergado para alterar os índices inflacionários.
 
A inflação está corroendo o poder de compra dos assalariados, percebida com clareza nas compras nos supermercados. O aumento da taxa básica de juros tornará o crédito mais caro e mais escasso, minando as esperanças de ascensão da classe média média aos padrões de consumo da classe média alta. O desemprego parou de cair e já começa a haver uma preocupação com a manutenção do emprego existente. 
 
O tema da corrupção está presente nas manifestações de todos os estratos da sociedade, que percebe que a meritocracia continua atropelada pelo compadrio. E sua aparição nas manifestações de rua certamente está sendo temida pelas agremiações políticas mais envolvidas com ela recentemente.
 
A população é cética quanto ao combate à corrupção pela simples proposta de reforma política centrada na mudança do sistema eleitoral e na forma de financiamento das campanhas. 
 
O que a sociedade vem manifestando é uma oposição a “tudo que está aí”: a má aplicação do suado dinheiro dos contribuintes em obras de valor duvidoso; a má qualidade da maioria dos serviços públicos; a marginalização de todos, na definição das prioridades dos governos.
 
É disso que tratam as manifestações e elas podem até esmorecer, mas permanecerão latentes até que suas reais causas sejam contempladas.(cc)

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