A economia azul
Blues é um gênero musical que se fundamenta no uso de notas tocadas ou cantadas numa frequência baixa, com fins expressivos, evitando notas da escala maior e utilizando sempre uma estrutura repetitiva. Os blues se desenvolveram a partir dos spirituals, o gênero dos escravos libertos nos Estados Unidos. Suas letras eram, muitas vezes, de protestos contra a escravidão.
Na última sexta-feira, na Argentina, o “dólar blue”, o dólar azul, a moeda transacionada no mercado (paralelo) de câmbio, superou a marca de dez pesos. Isso estabeleceu um ágio de quase 100% sobre a cotação da moeda argentina no mercado oficial.
O nome para o dólar paralelo naquele país não poderia ser mais apropriado – embora a origem da qualificação de “azul” pretenda apenas distinguir o valor em pesos da moeda argentina no mercado negro em oposição ao valor do dólar “verde” cotado no mercado oficial.
A denominação é apropriada até porque, como no gênero musical, reflete a frequência baixa da política econômica praticada no país vizinho. Reflete também o caráter repetitivo de políticas equivocadas de controles de preços e de importações. Ou ainda, se preferirem, o protesto do cidadão comum, que não mais confia no retorno e na liquidez de outras aplicações financeiras em moeda local.
Como afirmou o influente jornal argentino Ámbito Financiero, as casas de câmbio de Buenos Aires paralisaram seus negócios, receando medidas repressivas. As operações que ainda se realizam são de pequenos valores, com clientes conhecidos. Não existe, portanto, no atual momento, um preço de referência para a moeda americana no mercado paralelo. Na última sexta-feira, o dólar azul era vendido a 10,03 pesos, com a cotação estável.
Em um mercado sujeito a todo tipo de interferências, seria natural esperar que a o valor do dólar azul sofresse forte oscilação – o que de fato ocorreu ao longo de toda a semana passada. Elevados spreads entre a taxa oficial de câmbio e o valor da moeda no mercado paralelo são também indicações claras de escassez de divisas. No primeiro trimestre de 2011, as reservas internacionais da Argentina atingiram US$ 52 bilhões. Na quarta-feira, as reservas haviam caído para pouco mais de US$ 39 bilhões.
É natural, em circunstâncias como essa, que o governo procure proteger suas reservas. No caso da Argentina essa preocupação é acentuada em função do fato de que o país exporta principalmente commodities, cujos preços oscilam mais acentuadamente que os preços de produtos manufaturados.
Há duas formas de proteger as reservas: primeiro, restringindo o acesso à moeda estrangeira pelos que pretendem fazer pagamentos ao exterior, principalmente importadores de mercadorias e serviços e empresas que pretendam remeter lucros e dividendos; segundo, buscando ampliar as reservas existentes.
Com a Argentina fora do mercado de capitais internacionais desde a moratória de maio de 2005, a saída encontrada foi buscar “branquear” os dólares pertencentes a argentinos, no país e no exterior. Dois títulos do governo foram criados para essa finalidade. O primeiro, Cedin, emitido em dólares à taxa de câmbio oficial – 5,18 pesos na última sexta-feira – e utilizável apenas para a compra e venda de imóveis. O segundo, Baade, também emitido em dólares, destina-se a financiar a estatal petrolífera YPF e poderá ser livremente transacionado no mercado secundário.
Ambos os títulos foram recebidos com frieza pelo mercado argentino, mas a expectativa do governo é de captar pelo menos uma parcela dos dólares existentes no país. Estima-se que esse valor gire em torno de US$ 40 bilhões, além de outros US$ 160 bilhões depositados fora das fronteiras argentinas.
Caso seja possível atrair para o investimento em Cedins um quarto dos dólares que circulam hoje na Argentina, o governo aumentaria suas reservas em US$ 10 bilhões, o que compensaria em grande parte a perda ocorrida nos últimos dois anos.
Osaudoso ex-ministro da Fazenda, Mário Henrique Simonsen, dizia que a inflação aleija, mas o balanço de pagamentos mata. A inflação na Argentina é uma incógnita, já que as estimativas do setor privado multiplicam por três as estimativas do instituto oficial – um problema capaz de aleijar qualquer economia. Mas a profunda crise cambial argentina é ainda mais grave.
As medidas de controle das importações e de remessas ao exterior não produziram, como seria de se esperar, os resultados almejados. Pairam grandes dúvidas sobre se haverá compradores para os Cedins e Baades. Ainda que existam, trarão apenas uma solução transitória para um problema crônico.
O pior dessa história é que esse desequilíbrio interno está prejudicando a todos, incluindo os parceiros do comércio bilateral da Argentina no Mercosul – especialmente para o maior deles, o Brasil.(DC)