Condutores sem habilitação, alcoolizados e superlotação: os problemas do transporte marítimo
Por toda Morro de São Paulo, distrito da cidade de Cairu, vendem-se passeios. Tia e dois sobrinhos passeavam por lá, no verão passado, quando aceitaram uma das ofertas: R$ 700 para percorrer, de lancha, pontos paradisíacos da região. A viagem deles estava só no início quando os problemas começaram. Em terra firme, os três descobririam ter sido vítimas de uma viagem clandestina.
As memórias daquele 17 de janeiro de 2023 voltaram à tona no dia 29 de dezembro, quando dois turistas morreram depois da colisão entre duas lanchas, na Ilha de Boipeba. “Isso disparou a lembrança. A gente por milagre não morreu”, diz a tia, que percorreu o mesmo trajeto (chamado “Volta a ilha”) onde ocorreu o acidente.
O comandante da embarcação de passeio envolvida na batida, segundo a Polícia Civil, apresentava sinais de embriaguez e foi preso. O outro barco fazia a travessia entre Valença e Boipeba. A Capitania dos Portos apura o ocorrido.
Pouco mais de um ano antes, a família de baianos, que pede para não ser identificada, iniciava o trajeto em uma tarde de sol. A primeira intercorrência logo aconteceu.
“Ele seguiu para alto-mar. A barra de direção quebrou e a lancha desgovernou. Rodava no meio do mar e a gente pulando dentro da lancha. [Mas] a gente ainda não tinha ideia do que estava acontecendo.”
Passageira de embarcação ilegal.
Ela e machucou o cóccix durante as batidas na embarcação.
O piloto, ainda na versão dela, mergulhou e reparou o problema. A viagem, então, seguiu. Em Boipeba, quando pararam em um restaurante, ela diz ter avistado o condutor beber uma cerveja.
No Rio do Inferno, no caminho de volta para Morro, os problemas seguiram. A lancha, dessa vez, atolou. Os passageiros, em pedido de socorro, acenavam para barcos vizinhos. “Mas ele [piloto] dizia para não chamarmos, que íamos atrapalhar”, recorda a mulher.
Passava das 18h quando desembarcaram em Morro. No hotel, relataram o ocorrido para o proprietário, que chamou agentes da Prefeitura de Cairu. Deles, os turistas ouviram ter partido em um barco ilegal.
Depois disso, ainda de acordo com eles, o piloto da lancha os perseguiu. “Dizia que se acontecesse algo com ele, a gente ia ver”. No dia seguinte, eles voltaram para Salvador. “Cheguei pensar em fazer a denúncia, mas fiquei com medo. E tem a dificuldade de falar sobre quase morrer. Esse negócio me fere até hoje”.
A situação relatada pela família está base de problemas que ainda afetam parte do setor marítimo, segundo condutores que trabalham legalmente, empresários, turistas e nativos.
Os principais desafios, eles dizem, são a falta de formação de alguns condutores, superlotação das embarcações, condição dos barcos e uso do álcool durante o trabalho.
“O conjunto da obra em todo lugar é sempre o mesmo”, afirma um condutor de embarcações de Valença, cidade de onde também saem embarcações de passeio. Ele diz que barcos guiados por pessoas sem habilitação correta são uma realidade, seja pelos próprios proprietários ou contratados por empresas e associações.
“Temos embarcações classificadas como miúdas, das quais os comandantes são auxiliares de convés. E temos uma embarcação com o porte maior, que lota moço de convés. A primeira precisa de duas semanas de curso e o segundo de seis. Olhe a disparidade. Aí os donos dessas embarcações, visando o lucro, contratam pessoas não capacitadas. É como um ônibus guiado por uma carteira de moto”, compara ele.
Verão eleva procura por passeios
Até fevereiro, são aguardados na Bahia 6,5 milhões de turistas, calcula a Secretaria de Turismo do Estado (Setur). Entre os oito destinos mais procurados, seis são litorâneos, como Morro de São Paulo.
Em Cairu, explicou o secretário municipal de Turismo, Cláudio Brito, o verão também era – ele flexiona o verbo no passado – o período de proliferação da clandestinidade. “Em um grande dia de movimento, saíam até 25 embarcações ilegalmente”, estima.
Mas, segundo o gestor, a criação de um aplicativo chamado Viva Cairu, em novembro de 2021, enfraqueceu as embarcações ilegais.
“Agora, as embarcações são cadastradas, temos uma fiscalização atuante. Hoje, posso garantir que pode acontecer de sair um barco ilegal, uma vez por semana, talvez, mas logo é detectado.”
Secretário de turismo de Cairu.
Gestor diz não lembrar da situação dos turistas de Salvador em uma embarcação ilegal, no verão passado.
O fluxo de turistas nesta época do ano eleva, é claro, a procura por passeios marítimos. Enquanto conversava com a reportagem, na tarde da última sexta-feira (5), Cláudio acompanhava, pela tela do celular, o fluxo de turistas no mar. “837 turistas estão em passeio agora”.
Por isso, a Capitania dos Portos intensifica, no período, as fiscalizações. Em dezembro passado, 22 condutores foram abordados sem a habilitação – 11 deles entre Morro de São Paulo, Boipeba e região.
Correio