Esporte

Conheça Marilia Barreiros, pioneira na Travessia Mar Grande-Salvador

Marilia se tornou, em 1957, a primeira mulher a fazer a travessia, dois anos após a criação da prova

Aos sete anos de idade, Marilia Barreiros acordava todos os dias, na Península de Itapagipe, pulava a janela de casa e se jogava no mar. “Olha o peixinho nadando”, comentavam os vizinhos. Aos 85 anos, ao lado de uma piscina, de maiô e óculos de mergulho, Marilia sorri ao falar da relação com a água e de como se tornou uma nadadora profissional: “Sempre quis virar atleta”.

Marilia se tornou, em 1957, a primeira mulher a fazer a travessia Mar Grande-Salvador, dois anos após a criação da prova. Desde então, repetiu o feito sete vezes. E tem vontade de fazer novamente. “Quem sabe daí pra frente?”, diz Marilia, que já esteve por três vezes na lista das 10 melhores nadadoras do mundo pela Federação Internacional de Natação.

Em casa, a atleta exibe, orgulhosamente, um quarto exclusivo para a coleção de conquistas. São 49 troféus e 957 medalhas. Aos 14 anos ela ganhou a primeira de ouro, quando bateu o recorde baiano dos 100 metros nado peito. “Quero chegar às mil medalhas e dar uma festa”, planeja Marilia, que, aos 85 anos, segue nadando diariamente dois mil metros em uma academia em Salvador.

Ela já está inscrita para participar do 28º Campeonato Brasileiro de Águas Abertas, na praia de Inema, no próximo sábado, 11. E, no final do mês, vai nadar no 70º Campeonato Brasileiro Masters de Natação, em um clube de Uberlândia, Minas Gerais. “Não chega ainda às mil medalhas, mas já ajuda”.

Primeiro brasileiro a conquistar a Copa do Mundo de Natação e pioneiro da modalidade masculina em Olímpíadas, o baiano Allan do Carmo tem Marilia como referência. “Ela é uma pessoa muito importante no cenário da natação baiana”, diz. Allan tinha o mesmo treinador, o nadador Luís Rogério Arapiraca, e morava no mesmo bairro que Marilia. “A gente se encontrava muito”.

Os dois já se encontraram também nas águas, em provas de natação. Allan reconhece o feito de Marilia ter aberto os caminhos da travessia Mar Grande-Salvador para as mulheres. “Sei bem como é essa prova”, comenta o ex-atleta, que é recordista da prova, com o tempo de 1 hora, 34 minutos e 8 segundos, e se aposentou fazendo o trajeto, em 2020.

Há 63 anos, foi a vez de Marilia atravessar os 12 quilômetros entre Mar Grande e Salvador pela primeira vez. “A primeira travessia foi feita por Liberato de Matos, nadador e pescador, em 1955. Eu acompanhei no rádio e pensei ‘ano que vem eu vou fazer essa travessia’, mas, no ano seguinte, não tinha idade para isso”.

Ao completar 18 anos, ela se inscreveu junto com outras três mulheres, mas foi a única a finalizar a prova, no Porto da Barra, acompanhada por um saveiro com o pai dela, Liberato de Matos, um técnico e um pescador, que era dono da embarcação.

Mais de seis décadas depois, Marilia descreve aquele desafio destacando os momentos de dificuldade e glória: “A correnteza me pegou quando cheguei na meia travessia, que é um ponto de decisão, porque a gente sai da enchente e chega na vazante”. Na situação, Marilia olhou para o barco. “Meu pai e o técnico não entendiam nada”. Quem ajudou a nadadora foi o saveirista. “Falou que eu deveria nadar mais para a praia para não pegar a correnteza”. Liberato também instruiu a atleta.

Mas, chegando mais perto do Porto da Barra, a situação ficou ainda mais complicada. “Nadava um metro e voltada três”. Nesse momento, o saveirista pulou na água e disse a Marilia que ela teria que voltar para o Farol da Barra e nadar por cima das pedras para evitar a correnteza. “E lá eu fui”, lembra, incentivada pelo público nas areias que assistam à chegada da nadadora.

“A essa altura eu perguntei: quantas têm nadando? E me disseram: só você. Ali eu comecei a travessia de novo e pensei: ‘Agora eu chego de qualquer jeito’. E cheguei”, conta Marilia, orgulhosa. Aos 60 anos, a nadadora repetiu a prova pela sexta vez e bateu o próprio recorde, com o tempo de 2 horas e 54 minutos. Desde então, fez a travessia novamente aos 70 e aos 75 anos.

Com tudo planejado para a nona vez, aos 80 anos, ela machucou a perna. O plano era entrar para o livro dos recordes, o Guiness Book, como a mulher mais velha a realizar o feito. O sonho ainda está de pé, já que Marilia se mantém ativa, com treinos diários de natação e musculação.

Inspiração

Para Allan do Carmo, aposentado das provas do esporte há três anos, a rotina de Marilia é uma inspiração. “Nosso corpo pede [a atividade] como ser humano e ex-atleta”, diz o campeão mundial. A nadadora, por outro lado, não fala em aposentadoria das piscinas. Formada em Engenharia Civil e de Petróleo, ela trabalhou na Petrobras por 30 anos.

Desde a aposentadoria da empresa, a dedicação à natação aumentou. Com dois filhos e quatro netos, Marilia conta que apenas dois deles demonstraram um interesse maior pelo esporte. “Coloquei os filhos na natação, mas não vingaram. Tem dois netos, que são gêmeos, nadando agora, vamos ver se vai vingar”, brinca a atleta.
Além de ser inspiração para Allan e os netos, ela é referência para outras mulheres no esporte. A nadadora baiana Desirée Dalia, 67 anos, conta que sempre admirou Marilia. Elas fizeram a travessia Mar Grande-Salvador juntas em 1991, a primeira de Desirée e a quinta da veterana. Naquele ano, as duas enfrentaram uma tempestade na Baía de Todos-os-Santos.

Segundo Desirée, poucas mulheres completaram a prova em 1991. “Ela jurou que nunca mais ia fazer”, lembra Marilia, dando risada. “Mas, meu juramento não deu em nada. Depois disso, já fiz 25 travessias”, conta Desirée, recordista em participações na prova. A atleta se apaixonou pelo esporte e abriu, há 26 anos, uma academia de natação, onde Marilia nada todos os dias.

“A travessia Mar Grande-Salvador me deu tudo, me deu a academia, o propósito e a inspiração para nadar”, relata Desirée, que vai acompanhar a colega no campeonato em Uberlândia no fim do mês. “Eu me espelho nela porque eu sinto que se ela fez, eu faço. Se ela chegou, eu também posso chegar”.

Economista e profissional de Educação Física, Desirée mantém uma amizade com Marilia, que, desde a travessia de 1991, passou a apoiá-la em cada conquista. A nadadora de 67 anos coleciona 19 vitórias em provas e se prepara para participar da próxima edição da 53ª edição da Travessia Mar Grande-Salvador, realização do Grupo A TARDE e Ambiance Esporte e Eventos, que ocorre no dia 19 de novembro.

Ativa

A economista enxerga a amiga como um exemplo de envelhecimento ativo: “A gente tem que aprender a transformar em ‘fake news’ essa história de velhinho morrer de queda, a humanidade ganhou 20 anos de vida”. Foi com esse pretexto que Marilia se tornou uma das protagonistas do documentário Além do Aposento, do diretor paulista Gabriel Martínez.

Lançado em março deste ano no YouTube, o filme acompanha seis brasileiros aposentados que permaneceram ativos após o fim da carreira de trabalho. “Numa prova em Inema, Gabriel me entrevistou e ficou me acompanhando. Aí, ele me convidou para ir para São Paulo para dar um depoimento sobre natação”, conta Marilia.

No filme, a nadadora comenta que as pessoas “se assustam” ao vê-la em atividade no esporte. “Elas não esperam que uma pessoa de 85 anos nade como eu nado”, comenta em um trecho do documentário. “A vida depois dos 80 tem sido maravilhosa”, diz. A atleta ainda mantém uma rotina de alimentação associada à natação com acompanhamento de uma nutricionista.

Os treinos só pausam às quartas-feiras, quando Marilia tem aulas de ginástica cerebral. A veterana das piscinas também faz cursos de inglês e alemão. “Eu gosto de desenvolver a mente”, conta a nadadora. Ela diz ainda que a prática do esporte deu outra conquista importante para ela: chegou aos 85 anos sem problemas de saúde.

A disciplina e o foco são admirados por Desirée, que também revela outra faceta da amiga: “Ela é teimosa”. “Ela já caiu de pé de jabuticaba, de banquinho… Na musculação, lá na academia, fico falando para ela seguir o que o professor orienta”. E se o espírito jovem permanece em Marilia para a teimosia, ela faz o mesmo na relação com o mar: “A memória da água é viva”.

Marilia conta que costuma ir para a Praia de Barra do Paraguaçu, na Ilha de Itaparica, onde fica hospedada na casa de uma amiga. “Quando eu estou lá, nado uma hora no mar todo dia”. A atleta só destaca uma diferença da infância nas praias de Itapagipe: “Não pulo mais a janela”, brinca.

A TARDE

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