Salvador 474 anos: Praça que remete à personagem abolicionista transforma vida da população no Largo do Tanque
Em um importante ponto de Salvador, onde a Cidade Alta e a Cidade Baixa se encontram, há uma praça para onde ruas e locais históricos convergem. De lá, é possível ir a pé ao Curuzu, lar do Ilê Aiyê, ao São Caetano, por onde os combatentes do 2 de Julho passaram, e à Calçada, onde nasceu a malha ferroviária da capital baiana. Por séculos, essa praça era conhecida apenas por Largo do Tanque, mas há alguns anos o local recebeu um sobrenome libertador: Luís Gama, o jurista autodidata que se dedicou a libertar centenas de negros escravizados no país e é o patrono da abolição da escravatura no Brasil.
Curioso que hoje as milhares de pessoas que transitam diariamente pela Praça Largo do Tanque Luís Gama observam o enorme busto do advogado, jornalista e educador baiano, localizado no centro dela, mas não conhecem os feitos do homenageado. “Eu já li um pouquinho ali no busto, mas não sabia disso tudo, não”, diz o pipoqueiro Claudemiro Lima, que trabalha no local há sete anos, logo após a reforma, porque viu o movimento crescer.
Revitalizada pela Prefeitura de Salvador em dezembro de 2015, a praça está muito viva, com mudanças que trouxeram mais qualidade de vida aos moradores da região e deixaram para trás o clima de insegurança no local. Hoje, a área tem quadra poliesportiva, um campinho de areia, equipamentos de ginástica, parque infantil, pista de caminhada, ciclovia, mesas para jogos de salão e coreto.
Rosemeire Silva, de 54 anos, trabalha vendendo empréstimos na área de convivência e lazer. “Oxe, aqui tem gente o dia todo, é muito movimentada porque é uma rotatória para todos os lugares”, diz. Contribui para isso também os dois canteiros exclusivos para pontos de ônibus que foram criados de cada lado da praça após a reforma de 2015, organizando o tráfego, além das várias ruas que desembocam no vale que é o Largo do Tanque.
Porém, nem sempre foi assim. Há uma espécie de unanimidade de que, antes da reforma, o local era evitado por ser perigoso. Morador da Avenida Nestor Duarte, em São Caetano, Walter Lima estava descansando no coreto e falou sobre o local. “Nunca mais ouvi falar de briga, de morte, dessas coisas que tinham antigamente. Mas o pessoal precisa parar com o vandalismo na praça, isso é coisa de gente que não tem visão. É dinheiro do nosso bolso. Depois fica reclamando que não tem área de lazer”, reclama.
Péricles Ávila também morava em São Caetano, mas evitava passar pelo Largo do Tanque. Mudou-se do bairro antes da reforma. Hoje, vive uma situação curiosa: frequenta a atual Praça Luís Gama sempre que visita os amigos de longa data. “Esse lugar ficou harmonioso depois da revitalização. Você chega lá no final de semana e vê os pais levando as crianças para brincar no parquinho. À noite, armam barraca para vender acarajé, churrasquinho… Tornou-se um lugar ocupado pela população mesmo, e não pela bandidagem”, relata.
Perfil – Luís Gonzaga Pinto da Gama nasceu em 1830 em Salvador, na Rua do Bângala, em Nazaré, próximo à Igreja da Palma. Filho de uma negra alforriada e de um branco, o garoto negro nasceu livre. Porém, foi vendido como escravo aos 10 anos pelo próprio pai, afundado em dívidas criadas pelo vício em jogos de azar. Segundo o próprio Luís, sua mãe foi Luiza Mahim, africana que lutou na revolta da Sabinada, que ocorreu em Salvador em 1837.
Negociado a um comerciante de escravos, o garoto foi obrigado a rodar por anos pelo interior do Rio de Janeiro e de São Paulo, sem nunca ser comprado. À época, os negros baianos eram mal vistos por serem considerados revoltosos. Acabou trabalhando na casa deste comerciante, onde aprendeu a ler aos 17 anos com a ajuda de um estudante de Direito que era hóspede do patrão.
A educação o libertou, literalmente. Alfabetizado, Luís conheceu as leis e a injustiça que lhe havia sido cometida e conseguiu judicialmente a sua liberdade da escravidão. Foi a sua primeira vitória na Justiça e um prenúncio do que estava por vir. Logo, mudou-se para a capital paulista, onde serviu à força militar, entidade de segurança pública da época.
Como poucos da força militar sabiam ler, Luís foi nomeado escrivão do órgão e teve contato ainda mais profundo com as leis. Autodidata, estudou a legislação e frequentou a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, uma das poucas instituições de ensino da época e, até hoje, uma das mais renomadas da área no Brasil.
Porém, ser aluno de fato não lhe era permitido por ser negro. Por isso, assistiu às aulas como ouvinte. Luís decidiu então tornar-se um rábula, ou seja, um profissional que não é formado em Direito, mas que possui profundo conhecimento jurídico e pode advogar nos tribunais.
Assim, deu início ao seu legado. Como rábula, dedicou-se a libertar na Justiça outros negros que, assim como ele um dia, estavam escravizados. Até 1882, quando faleceu, Luís já havia conquistado a liberdade de pelo menos 500 pessoas. Mais do que isso, ajudava os negros recém-libertos a encontrarem casa e trabalho.
Sua luta não ficou restrita aos tribunais. Luís foi um dos fundadores do jornal satírico Diabo Coxo, além de ter escrito para outros jornais paulistas. Em seus textos, defendia de forma inflamada o fim da escravatura no Brasil e era um crítico feroz da monarquia e do regime escravocrata. Ciente do papel que a educação teve em sua liberdade, ainda fundou uma escola gratuita para que crianças e adultos negros pudessem ser alfabetizadas.
Seus julgamentos em prol dos escravizados eram comentados em todo o país. Seus textos e suas ideias abolicionistas, também. Numa carta, escrita pouco antes de falecer, Luís disse ter perdido a conta de quantas vezes foi ameaçado de morte. “Todo esse ativismo humanista tornou Luís Gama uma das pessoas mais conhecidas e influentes do Brasil à época. E, também, uma das mais perseguidas pelos escravocratas”, diz o historiador Murilo Mello.
“Estamos falando de meados do Século XIX, e naquela época Luís já entendia que a educação é libertadora. Sendo negro, vendido pelo pai como escravo, com toda esse passado de abandono, tendo estudado Direito como autodidata, é incrível a sua força e o que ele conquistou. Luís Gama é, sem dúvidas, uma das pessoas mais importantes da história brasileira e deve ser lembrado sempre”, completa.
Luís Gama morreu em 24 de agosto de 1882, vítima de diabetes. “O enterro dele foi uma comoção em São Paulo. Estima-se que cerca de 10% da população da cidade na época compareceu ao seu velório, para se ter uma ideia do quanto ele influenciou e impactou as pessoas numa época em que não havia rádio, TV e internet”, destaca Mello.
O libertador de escravos, portanto, não vivenciou a Lei Áurea, de 1888, que acabou com a escravidão no Brasil. No entanto, os historiadores consideram que Luís Gama é a própria natureza encarnada da lei, por ter aplicado os seus efeitos, através da sua luta, muitos anos antes. É, inclusive, o único intelectual do movimento abolicionista a ter, de fato, sofrido os efeitos perversos da escravidão.
“Luís é a pessoa mais relevante da luta abolicionista da segunda metade do século XIX. Ele quebra toda aquela ideia de que a abolição foi feita pela Princesa Isabel e por intelectuais brancos. Nada disso. A luta da sociedade civil, especialmente de negros, foi fundamental. E Luís Gama foi um dos mais atuantes nessa linha”, resume o historiador Murilo Mello.
Homenagens – O legado de Luís Gama tem recebido uma série de homenagens na última década. Em 2015, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) concedeu-lhe o título de advogado. Em 2017, a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, hoje parte da Universidade de São Paulo (USP), batizou uma de suas salas com o nome do abolicionista.
Em 2018, Luís Gama foi inscrito no Livro de Aço dos Heróis Nacionais, depositado no Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves. Em 2021, a USP concedeu-lhe o título de doutor honoris causa.
Fotos: Bruno Concha/Secom
Reportagem: Vitor Villar/Secom