O que é a mutagênese letal, possível arma contra covid-19
Até o momento, nenhum tratamento se mostrou totalmente eficaz contra o Sars-Cov-2, o vírus que causa a covid-19. E alguns cientistas se perguntam se outra estratégia poderia ser aplicada: usar as próprias armas do vírus contra ele.
Uma das táticas do Sars-Cov-2 para derrotar o sistema imunológico é se replicar rapidamente, mas nisso também existe um ponto fraco. Conforme o vírus se replica, ele acumula mutações.
Assim, seria possível combatê-lo acelerando essas mutações e fazendo com que o vírus “sofresse mutação mortal”, em um processo que os cientistas chamam de “mutagênese letal”?
Medicamentos que causam mutagênese letal já foram testadas contra outros vírus. A grande questão é se esse mesmo mecanismo poderia ser eficaz contra o novo coronavírus.
Vírus de RNA e sua capacidade de mutação
O vírus que causa a covid-19 é um vírus de RNA, ou seja, o material genético dentro é ácido ribonucléico, em vez de DNA (ácido desoxirribonucleico).
Vírus de RNA, como os da gripe, ebola ou covid-19, entre outros, consistem basicamente em uma mensagem escrita em RNA rodeada por proteínas.
Essa mensagem está escrita em quatro letras, “a”, “g”, “c”, “u”. Cada uma deles representa um composto químico ou nucleotídeo, e a ordem desses compostos, como a ordem das letras em uma palavra, determina qual mensagem é transmitida.
No caso de um vírus, a ordem das letras contém as instruções para o vírus se replicar. E, ao se replicar, os vírus geram mutações ou erros na sequência das letras.
“Os vírus de RNA com genomas menores podem tolerar frequências de mutação mais altas (o número de mutações em relação ao número total de nucleotídeos). Esse número é aproximadamente uma mutação por 10.000 nucleotídeos, o que no mundo da biologia é muito”, explicou Armando Arias, virologista da Universidade de Castilla-La Mancha, na Espanha, e pesquisador de RNA, à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC.
“Grandes vírus de DNA têm taxas de mutação muito mais baixas (entre 100 e 10.000 vezes menores). Como seus genomas são tão grandes, eles não podem tolerar uma mutação a cada 10.000 nucleotídeos. Muitas mutações aleatórias se acumulariam em um único genoma, que poderia inativar alguma função vital para o vírus. Por isso, os vírus de DNA são menos mutáveis ”, acrescentou o pesquisador.
“Os vírus de RNA também têm polimerases (as enzimas que copiam o material genético) que sofrem mais mutações do que os vírus de DNA. E não têm mecanismos de reparo de erros.”
Esteban Domingo, virologista do Centro de Biologia Molecular Severo Ochoa, em Madri, foi o pioneiro em demonstrar que os vírus de RNA se multiplicavam cometendo erros até acabar formando o que o cientista chama de “nuvens de mutantes”.
“Nuvens de mutantes referem-se ao fato de que cada cópia individual do material genético (ou seja, o ácido ribonucléico presente dentro de cada partícula viral e que é composta por alguns milhares de unidades que chamamos de nucleotídeos) não é idêntica às outras”, disse Domingo à BBC News Mundo.
“Como as populações de vírus costumam ser muito grandes, com bilhões de partículas, cada uma com seu genoma ligeiramente diferente dos outros, a maneira de visualizá-lo é chamá-lo de ‘nuvem de mutantes’.”
Mutar, uma espada de dois gumes
As nuvens de mutantes lutam continuamente para se adaptar ao ambiente e prosperar.
Para o vírus, a mutação é uma “estratégia de risco e benefício”, disse Arias.
“Temos que pensar que os vírus de RNA, sendo tão pequenos, são ‘menos sofisticados’ do que os vírus de DNA maiores. Sua bateria de informações genéticas é reduzida e, para escapar do sistema imunológico, para se adaptar ao ambiente, o que eles fazem é ter essa capacidade de mudar muito rapidamente.”
Mas a mutação traz riscos.
“As mutações geralmente não são boas, pois afetam a transmissão de informações genéticas para os descendentes”, explicou Arias.
Ao sofrer mutações rapidamente, os vírus RNA chegam perigosamente perto do número máximo de mutações que podem tolerar. Eles se aproximam do que é conhecido como limite de erro: a taxa máxima de mutações que um determinado organismo pode acumular.
“É como se os vírus de RNA estivessem caminhando na beira do precipício porque se arriscam muito”, acrescentou o pesquisador.
“Então, o que estamos tentando fazer com a mutagênese letal é dar a eles o empurrãozinho de que precisam.”
O que é mutagênese letal
Bilhões de partículas infecciosas são geradas em cada infecção.
“Em uma população normal, até 50% desses vírus talvez não sejam viáveis. A ideia da mutagênese letal é que se fizermos o vírus sofrer uma mutação 10 vezes maior, a taxa da população que não vai ser viável será 99,9% em vez de cerca de 50%”, disse Arias.
Para um vírus ser “viável” precisa ser capaz de continuar a transmitir sua informação genética e continuar a infectar.
“Imagine uma frase: ‘a casa é azul. E aí há uma mutação: ‘a casa em azul’. A mensagem ainda é transmitida, mas se trocamos seis ou sete letras ao acaso, a frase não faz mais sentido. Esse é o conceito de mutagênese letal”, disse o virologista.
“Mutar até a morte significa que um excesso de mutações faz com que as proteínas sintetizadas pelo vírus tenham tantas alterações que não funcionam bem”, explica Domingo.
“É como se eu te desse um computador para escrever e que eu programo para que a cada dez letras que você escreva, ele coloque uma errada, e que você tenha que reproduzir esse texto várias vezes no mesmo ritmo das letras. Verá que no final seria um texto incompreensível. Isso é o que acontece com o vírus e o resultado é uma incapacidade de infectar.”
História de mutagênese letal
Esteban Domingo foi um dos primeiros cientistas a desenvolver o conceito de mutagênese letal, há três décadas.
“Foi quando passei um ano sabático na Universidade da Califórnia em San Diego no laboratório do professor John Holland, durante o ano acadêmico de 1989-1990”, disse. “Realizamos um estudo com vírus RNA para ver se os prejudicava o fato de aumentarmos sua taxa de erro (nível de mutação) por meio de agentes que causam mutações”.
“O resultado foi claro. Os vírus que já sofrem muitas mutações não conseguem manter sua infecciosidade se forem estimulados a sofrer mais mutações.”
“Esse foi o começo. A mutagênese letal se tornou um campo muito ativo da farmacologia antiviral.”
Domingo e seus colegas foram inspirados, como ele explicou, em uma previsão da chamada teoria da quasi-espécie, desenvolvida pelos professores Manfred Eigen (Prêmio Nobel de Química em 1967) e Peter Schuster, na Alemanha, que diz que um excesso de mutações é incompatível com a manutenção da informação genética.
No caso dos vírus, essa informação genética é o que permite sua capacidade de infectar.
Medicamentos que enganam os vírus
Na última década, foram desenvolvidos medicamentos que aumentam os erros dos vírus durante sua replicação, mas não os erros nas células dos organismos hospedeiros, disse Domingo.
Um desses medicamentos é o favipiravir, que tem diferentes mecanismos de ação e um deles é a mutagênese letal, que provoca ao “enganar” o vírus para que ele cometa mais erros.
“Poderíamos dizer que o favipiravir é uma letra disfarçada. O vírus reconhece-o como uma letra e incorpora-o. Uma vez incorporado, quando vai copiá-lo novamente, não sabe se é um a ou se é um g”, explica Arias.
“Digamos que seja uma letra promíscua, com características de duas letras. Uma letra híbrida que engana o vírus”.
Há muitos estudos sobre o efeito do favipiravir nos vírus de RNA.
Um deles é o que Arias publicou em 2014, quando estava na Universidade de Cambridge, sobre camundongos infectados pelo norovírus, um vírus RNA que causa vômito e diarreia.
“Conseguimos curar os ratos com o tratamento com favipiravir e mostramos que eles foram curados pela ação mutagênica desse composto”, explicou.
No Japão, entre outros países, o favipiravir (sob o nome de Avigan) está licenciado para tratar certas cepas de influenza em humanos.
E também houve estudos em humanos com o vírus Ebola.
“Esses estudos sugerem que o favipiravir tem um efeito positivo quando o tratamento é iniciado logo no começo da doença”, disse Arias.
A dúvida sobre a covid-19
A grande questão é se medicamentos que causam mutagênese letal poderiam ser eficazes no caso do novo coronavírus.
“Vários grupos, inclusive o nosso, estão investigando medicamentos que atuam contra o vírus causador da covid-19 e que atuam por mutagênese letal”, disse Domingo.
“Há dois artigos publicados este ano com resultados muito encorajadores com o vírus Sars-Cov-2, o que estimula mais pesquisas sobre esta estratégia.”
Um desses trabalhos a que Domingo se refere é liderado pelo cientista americano Ralph Baric, da Universidade da Carolina do Norte, em Chapel Hill.
Baric e seus colegas testaram em laboratório uma droga experimental que causa mutagênese letal, EIDD-2801, em células epiteliais humanas infectadas com Sars-Cov-2.
Outro estudo avaliou o efeito do favipiravir em culturas de células derivadas de macacos verdes africanos infectados com Sars-Cov-2.
“O estudo mostrou que é possível, em princípio, desacelerar o crescimento do Sars-Cov-2 usando compostos como o favipiravir”, disse Olve Peersen, professor da Colorado State University nos Estados Unidos e um dos autores desse estudo.
Peersen acredita, entretanto, que o potencial terapêutico do favipiravir contra a Sars-Cov-2 em humanos é baixo.
“Nossos dados mostram que nas culturas em laboratório precisávamos de concentrações muito mais altas do que o que poderia ocorrer no corpo humano.”
Testes com pacientes humanos
Atualmente, existem mais de 30 estudos clínicos sobre o efeito do favipiravir em pacientes com covid-19.
Um estudo preliminar na China, em março, mostrou que os pacientes com covid-19 que receberam favipiravir eliminaram o vírus em 4 dias, em vez de 11 dias com outros antivirais.
Mas o favipiravir foi administrado a apenas 35 pacientes, e os pesquisadores chineses observaram que não foi um estudo duplo-cego randomizado. (“Duplo-cego” significa que pesquisadores e pacientes não sabem qual tratamento é designado, e “randomizado” significa que os participantes são distribuídos de forma aleatória. Ambas as condições garantem que um estudo não seja afetado pelo efeito placebo ou viés do observador).
Outro estudo preliminar realizado por pesquisadores russos aponta que o favipiravir também obteve resultados positivos em pacientes com sintomas moderados de covid-19. O estudo, publicado em agosto, não foi revisado por pares.
Não está claro a partir desses testes em humanos se o efeito positivo foi devido à mutagênese letal ou outro mecanismo de ação do medicamento.
‘Potencial‘
Perguntamos a Esteban Domingo e Armando Arias se eles acreditam que a mutagênese letal pode ser uma arma importante no futuro para combater o covid-19 e outras pandemias.
“Eu acredito e tenho fortes razões para isso. Talvez poucas pessoas saibam que dois agentes antivirais já usados em humanos, chamados ribavirina e favipiravir, se mostraram muito eficazes contra vários vírus”, disse Domingo.
“Embora não se soubesse quando seu uso foi aprovado pelas autoridades sanitárias, agora sabemos que seu mecanismo de ação é, pelo menos em parte, devido à mutagênese letal”.
“Além disso, as substâncias que são usadas para mutagênese letal são de amplo espectro, o que significa que são eficazes contra vários tipos diferentes de vírus. Portanto, estou convencido de que essas drogas têm o potencial de ser eficazes contra outros vírus de RNA que sem dúvida entrarão na população humana no futuro. “
Tanto o favipiravir quanto a ribavirina (esta usada contra a hepatite C) estão na lista de candidatos a tratamentos experimentais contra a covid-19 publicada pela Organização Mundial da Saúde em 28 de abril.
Arias alerta que o favipiravir ainda tem muitas limitações, pois é um composto de baixa solubilidade e isso dificulta, por exemplo, sua injeção na corrente sanguínea. Mas ele garante que “cada vez temos melhores ferramentas para gerar melhores medicamentos”.
“Se encontrarmos um composto mais solúvel, podemos obter resultados muito melhores”, disse. “Há evidências crescentes de que a mutagênese letal é a estratégia antiviral mais promissora e que tem a grande vantagem de poder ser eficaz contra uma grande bateria de vírus de RNA muito diferentes.”