Como livrar as crianças do ‘analfabetismo do futuro’
Saber programar em um computador é considerada por especialistas da área de informática como a habilidade do século 21. E, para aprender os fundamentos da codificação desde cedo, já existem no mercado produtos e serviços direcionados especificamente ao público infantil (veja lista na parte final da reportagem).
São brinquedos, livros, sites e cursos que têm como objetivo introduzir as crianças aos conceitos básicos de programação. Há opções até para bebês irem se familiarizando com o mundo dos bits e bytes.
“Quanto mais cedo, mais fácil de assimilar”, disse à BBC Brasil a britânica Stephanie Shirley, de 84 anos, um dos ícones da tecnologia da informação. Ela sugere que crianças a partir de dois anos já sejam apresentadas às idéias básicas por trás da programação.
“O alfabetismo digital é a habilidade do século 21 e as pessoas que não aprenderem hoje serão consideradas analfabetas no futuro”, disse à BBC Brasil Shirley, na mesma semana em que recebeu o título de Dama Honorária das mãos da rainha Elizabeth 2ª, no Palácio de Buckingham, em Londres.
No Brasil, a informática não faz parte do currículo escolar obrigatório. Estamos atrás de países como Finlândia, Austrália, Inglaterra, Japão e Estônia, onde crianças com 6 e 7 anos de idade já entram em contato com os fundamentos de codificação.
Nativos digitais
Embora muitas crianças tenham facilidade em mexer em eletrônicos – os chamados “nativos digitais” como batizou o escritor americano Marc Prensky -, isso não significa que elas estejam preparadas para serem produtoras de tecnologia, mas apenas consumidoras.
“Jogar, digitar, mandar mensagens não torna alguém fluente em computação. As crianças, hoje em dia, tem familiaridade em usar as novas tecnologias, mas não em criá-las. É como se elas pudessem ler, mas não escrever”, afirmou Mitchel Resnick, professor do MIT.
É preciso encarar com cautela, no entanto, sugestões como a de Shirley. A ideia não é impor um computador e códigos complexos a crianças, mas sim apresentar, de forma lúdica, a lógica da linguagem baseada em comandos.
O brasileiro Leo Burd, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês), desenvolveu com Mitchel Resnick a plataforma online gratuita Scratch, para ensinar crianças a partir dos 6 anos a programar.
Segundo ele, brincadeiras simples podem apresentar conceitos de codificação com criatividade.
“A criança pode brincar de ser robô dando ordem uma para outra. Ela pode dar uma série de comandos para a mãe chegar até a geladeira: anda dois passos para a direita, depois dá dois passos e vira para a esquerda. Você está usando conceitos de programação sem necessariamente estar no computador”, sugere.
O brasileiro alerta também para possíveis exageros na apresentação de códigos a crianças, fazendo uma analogia com andar de bicicleta – é muito mais fácil ensinar uma criança a pedalar do que um adulto.
“Mas você não vai ensinar um bebê a andar de bicicleta!”, ressalta Burd. “Eu não o colocaria na frente de um computador”, acrescenta.
Fluência em linguagens de código
Uma pesquisa conduzida pela Universidade Stanford, nos Estados Unidos, indicou que até 2030 a inteligência artificial estará, por exemplo, presente nos estudos das crianças, na forma como cuidamos de nossa saúde e até na organização do trânsito.
Sendo assim, saber programar será tão importante quanto o domínio de uma língua, independente de a pessoa trabalhar na área de informática, medicina ou direito, por exemplo.
“Aprender a ler e escrever é uma coisa importante para a vida das pessoas. Isso não significa que todo mundo que aprende a escrever será um escritor profissional. Mas é importante ganhar fluência”, afirma Burd, do MIT.
“É preciso ter pelo menos um conhecimento mínimo de como as coisas funcionam no computador. Assim, você começa a ter ideia das limitações da máquina e como ela pode contribuir para a sua vida ou não. O computador deixou de ser apenas uma tela e um teclado. Está em tudo. São formas que a gente nem se dá conta.”
Há exemplos de quem já vem aprendendo isso desde cedo, como a americana Emma Yang, que aos 12 anos criou um aplicativo para se comunicar com a avó que sofre de Alzheimer, ou o indiano Arjun Kumar, que aos 14 desenvolveu um app para os pais acompanharem online o trajeto do ônibus escolar de seus filhos.
“Na nossa sociedade não precisamos explicar por que a matemática é importante. Isso já está convencionado. É diferente da programação”, ressalta Tiago Maluta, responsável pelo Programaê!, projeto da Fundação Lemann que, em parceria com o MIT, desde 2014 oferece apoio gratuito a professores das redes pública e privada no Brasil, disponibilizando em seu site planos de aula para ensinar a codificar.
“Usamos um termo mais abrangente que é o pensamento computacional, que envolve raciocínio lógico, trabalho em equipe, resolução de problemas, criatividade”, afirma.
“Há uma prática transversal nas disciplinas. Tem um conceito que gostamos de usar, do MIT, que é o programar para aprender. Eu programo para aprender uma disciplina da escola. Tivemos o caso de um professor de educação física que estava usando os elementos de ângulo do Scratch para ensinar seus alunos”, conta Maluta.
Programação para crianças faz 50 anos
A história das ferramentas de programação destinadas a crianças é menos recente do que muitos pensam. Neste ano, faz 50 anos que o primeiro projeto educacional do gênero, o Logo, foi lançado nos EUA. Ele se tornou conhecido pela produção de gráficos tartaruga, que consistem em desenhos vetoriais criados por meio de comandos.
A data está sendo lembrada pela ilustração do Google, o Doodle, com uma animação inspirada na linguagem Logo, o que já fez o termo “linguagens de programação para crianças” saltar para o topo das buscas da ferramenta.
A BBC Brasil colabora com sua busca reunindo sugestões no Brasil e no mundo de como apresentar os pequenos à programação.
Livros
Com Code Babies, o web designer nova-iorquino John Vanden-Heuvel fez um livro de abas com muitas cores e símbolos usados na programação para que seu filho recém-nascido se familiarizasse com esses padrões.
Assim, surgiu uma série que inclui títulos como HTML for Babies, CSS for Babies, JavaScript for Babies, Web Design for Babies e Web Colors. A linguagem visual também é utilizada em livros para crianças maiores, como C++ for Kids, Excel for Kids e ABC of the Web.
Por sua vez, a analista de sistemas finlandesa Linda Liukas escreveu o livro Hello Ruby para apresentar conceitos básicos de codificação a crianças a partir de 4 anos. O objetivo, segundo ela, não é tornar a criança uma programadora, mas sim despertar o interesse pelo tema e desmistificar sua complexidade com exemplos de comandos, sequências e repetições.
Na história, traduzida em 20 línguas, a pequena Ruby perde sua coleção de pedras preciosas e embarca numa aventura para encontrá-las. No caminho, tem a ajuda de um leopardo, androides, uma raposa e um pinguim.
Brinquedos e brincadeiras
Robot Turtles é um jogo de tabuleiro tradicional em que a criança atua como um programador – o adulto é o computador. As tartarugas devem coletar pedras preciosas seguindo uma sequência de instruções. Sem perceber, elas vão aprendendo sobre sequências, loops, condições e algoritmos, conceitos básicos da programação. Indicado a partir dos 3 anos.
Já o Baby Codipeia, um brinquedo indicado a partir dos 3 anos, consiste em uma centopeia interativa em que cada segmento tem um comando de movimento – a criança pode criar sequências e determinar metas.
No Ozobot, um robô do tamanho de um bombom segue as linhas desenhadas pela criança em um papel e interpreta cada cor. Assim, são dados, por exemplo, comandos de velocidade e direção. Também é possível criar jogos e estipular objetivos. O brinquedo, que já recebeu vários prêmios, é indicado para maiores de 6 anos.
Cursos
Em diversos países estão sendo inauguradas escolas que prometem ensinar crianças em idade escolar a codificar.
No Brasil, SuperGeeks, MadCode, CtrlPlay, Code4All e Happy Code são algumas das franquias que apostam no nicho. Muitas usam jogos já populares como Minecraft e Roblox para chamar a atenção de meninos e meninas.
“Nossa proposta é mais do que programação, é ser uma escola das habilidades da nova economia do século 21, isto é, incentivar raciocínio lógico, trabalho em equipe, resolução de problemas, empreendedorismo e criatividade”, comenta Alexandre Jacobs, sócio da Happy Code, no Rio de Janeiro, que oferece cursos para crianças acima dos 6 anos.
A franquia conta com 77 unidades no país e um total de 3,5 mil alunos. A meta é chegar a 150 filiais no ano que vem.
Sites
Quem não quiser pagar um curso, pode buscar sites que oferecem plataformas gratuitas, como Hour of Code, Code.org, Pivot Animator e Scratch, do MIT, que permite ao usuário criar animações e jogos usando uma linguagem com blocos similares a Legos.
O Scratch já foi traduzido em 50 línguas, contabiliza 200 milhões de visitantes únicos por ano e deu origem ao ScratchJr para iPad.
Há também alguns sites direcionados às meninas, como Girls who Code, Black Girls Code e Made with Code, do Google.
Quase todos usam cores, personagens, elementos de jogos com interfaces simples de usar.(BBC)