Universidades públicas deveriam cobrar mensalidade de alunos ricos?
As universidades públicas brasileiras atravessam forte crise financeira. Exemplo mais gritante, a Universidade Estadual do Rio de Janeiro vem atrasando pagamento de salários há dois anos.
Em meio a esse quadro, voltou ao debate a proposta de cobrar mensalidade de alunos de maior renda. Em relatório divulgado nesta semana, o Banco Mundial defende a medida, argumentando que universidade pública brasileira é ineficiente e injusta.
Para seus economistas e outros apoiadores do fim da gratuidade, não é correto que toda a sociedade financie os estudos dos jovens de classes mais altas. Já os que se opõem à cobrança dizem que ela não seria suficiente para resolver a crise e propõem aumentar impostos sobre os mais ricos para financiar a educação.
Entenda abaixo os principais argumentos contra e a favor da mudança.
É justo acabar com o ensino gratuito?
O principal argumento contra a gratuidade é que a maioria dos alunos da rede pública está entre os brasileiros de renda mais alta, que em tese poderiam pagar.
Dados do IBGE mostram que, em 2005, 80% dos graduandos das universidades públicas estavam entre os 40% de maior renda no país. Medidas como a instituição da política de cotas reduziram esse percentual, mas esses alunos continuam sendo a maioria – eram 61% do total em 2015. Já a participação da base da pirâmide (40% mais pobres) passou de 8% para 22% no período.
“Nosso país é incrivelmente desigual. Cobrar (pelo ensino superior) pode ser um instrumento bastante eficaz de distribuição de renda”, acredita o economista Sergio Firpo, professor do Insper.
Defensor da gratuidade, o economista Fábio Waltenberg, professor da UFF (Universidade Federal Fluminense), considera que instituir a cobrança nas instituições públicas seria mexer em “um sistema que funciona bem”. Segundo ranking do jornal Folha de S.Paulo, entre as 30 melhores universidades do país, apenas duas são privadas.
Para ele, há outras maneiras de cobrar mais das parcelas de maior renda do país, como o retorno da tributação de lucros e de dividendos, criar um imposto sobre fortunas e aumentar a taxação de heranças.
Waltenberg lembra que o sistema tributário brasileiro é regressivo – ou seja, arrecada proporcionalmente mais dos pobres. Isso ocorre porque a maior parte do valor arrecadado não vem de impostos diretos sobre renda e propriedade, que pesam mais sobre os ricos, mas daqueles cobrados da produção e do consumo.
“Se a regressividade é de fato um problema, por que não atacar sua fonte primária, que é o próprio sistema tributário? Sem isso, o discurso contra a universidade pública parece ideológico”, crítica.
Estudo da economista Maria Eduarda Tannuri-Pianto, professora da Universidade de Brasília, em parceria com Carlos Renato Castro, gerente de Estudos Econômico-Fiscais do Tesouro Nacional, indica que o ensino superior público não beneficia apenas os mais ricos.
Eles estimaram como se dá a transferência de renda para os beneficiários dessas universidades. Segundo esses cálculos, feitos a partir dos impostos recolhidos por cada grupo de renda, há uma transferência dos segmentos renda mais alta para os graduandos de classe média. Já os mais pobres acabam não se beneficiando, pois poucos conseguem chegar às instituições públicas, ressalta Tannuri-Pianto.
Para ela, o melhor não seria criar mensalidades para graduandos, mas permitir outras formas de autofinanciamento das universidades públicas que hoje não são autorizadas, como cobrar por mestrados profissionalizantes para quem já está no mercado de trabalho. “Não precisar ser o governo financiando tudo”, disse.
Cobrança seria complicada e criaria obstáculos para os mais pobres?
Dentro da sua proposta de cobrança de mensalidade, o Banco Mundial recomenda que o governo amplie oferta de bolsas (programas como o Prouni) e empréstimos (programas como o Fies) para garantir acesso de alunos de renda menor ao ensino superior público.
Para Waltenberg, isso criaria novos problemas administrativos e não garantiria a entrada dos mais pobres.
“(Haveria a) necessidade de criar estruturas novas para cobrar alunos, para definir quem paga e quanto, para autorizar entrada e saída de salas de aula de alunos adimplentes e inadimplentes”, exemplifica.
Na sua avaliação, expandir o Fies não resolveria o problema das classes mais baixas porque pessoas de menor renda possivelmente ficariam com medo de assumir essas dívidas sem garantia de que terão depois rendimento para pagar.
“A cobrança afastaria ainda mais da universidade as classes mais desfavorecidas – cujos orçamentos já são apertados – e mercantilizaria de vez a universidade pública, um dos poucos espaços ainda relativamente ao abrigo da lógica de mercado”, acrescenta.
A favor da cobrança na rede pública, o pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) Paulo Meyer Nascimento diz que há um sistema que evita esse problema – os empréstimos com amortizações contingentes à renda (ECR), adotados em países como Austrália e Inglaterra.
Ele está no momento licenciado para estudar o modelo australiano na Australian National University. Nele, os graduados pagam depois de formados pelos cursos públicos, ao longo de anos, mas apenas caso atinjam uma renda mínima. Além disso, a cobrança é proporcional ao que o ex-aluno ganha, de modo que os que alcançam rendas maiores pagam taxas mais elevadas.
Outra característica importante desse sistema é que não há prazo para quitar a dívida e é garantido o perdão do saldo devedor após algumas décadas ou na morte. Segundo Meyer, isso serve como um “seguro” para o estudante mais pobre não ficar com medo de assumir uma dívida que talvez não consiga pagar depois.
O modelo não garante receita imediata para as universidades, mas os ganhos aumentam ao longo dos anos, conforme mais alunos se formam. Se a cobranças fossem feitas no Brasil de forma proporcional à renda dos formados, usando uma taxa equivalente a metade das alíquotas de imposto de renda, Meyer calcula que seria possível gerar, nos dez primeiros anos, de R$ 5 bilhões a R$ 9 bilhões extras para a rede de ensino federal (a depender da evolução do número de formados).
Em um cenário de forte restrição fiscal, o pesquisador considera que esses recursos seriam importantes para complementar o financiamento público, permitindo expandir a oferta de vagas nas universidades.
“Quem tem curso superior tende a auferir salários maiores ao longo da vida. É justo que toda a população pague integralmente pelo ensino superior, ao qual uma minoria tem acesso e para quem o mercado de trabalho tende a compensar financeiramente o esforço feito para obter o diploma?”, questiona.
Cobrar matrícula resolveria crise das universidades?
Os que se opõem à cobrança também argumentam que as matrículas não resolveriam a crise financeira, já que os custos não estão relacionados apenas a ensino, mas incluem também pesquisa e outros serviços que atendem a população, como hospitais universitários.
“A não ser que as mensalidades fossem altíssimas e pagas por todos os alunos”, afirma Waltenberg.
Já Sérgio Firpo concorda que cobrar pelos cursos de graduação não soluciona tudo, mas diz que “ajuda”.
“É preciso também mudar as regras para financiamento de pesquisa, permitindo que as universidades públicas façam parcerias com empresas, fundações. São soluções complementares”, diz.
Especialista em educação, o colunista do jornal O Globo Antonio Gois calcula que apenas um pequena parcela dos estudantes poderia pagar mensalidade sem acesso a bolsas ou empréstimos. A medida seria insuficiente para cobrir o financiamento das universidades, mas poderia gerar recursos para atender melhor os de menor renda, acredita.
“Dados que tabulei na Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) de 2015 mostram que, se aplicássemos no setor público os mesmos critérios de distribuição de bolsas do ProUni, a maioria (58%) dos matriculados em universidades mantidas por governos seriam elegíveis ao benefício de uma bolsa integral, por ter renda média familiar per capita inferior a 1,5 salário mínimo”, escreveu em março.
“Outros 27% poderiam se candidatar a uma bolsa parcial, por terem renda per capita entre 1,5 e três salários mínimos. Ou seja, sobrariam apenas 15% de estudantes que, pelos critérios do ProUni, poderiam pagar uma mensalidade integral”, concluiu.
Já o Banco Mundial defende que, além de cobrar matrículas, as universidades procurem aumentar sua eficiência, cortando gastos. O relatório aponta que os estudantes de instituições públicas custam, em média, de “duas a três vezes mais” que os de universidades privadas.
“Entre 2013 e 2015, o custo médio anual por estudante em universidades privadas sem e com fins lucrativos foi de aproximadamente R$ 12.600 e R$ 14.850, respectivamente”, estima o órgão, a partir de dados do Ministério da Educação. Já nas federais essa média ficou em R$ 40.900, enquanto nas estaduais foi de R$ 32.200, indica o mesmo cálculo.
Waltenberg questiona essas comparações, já que em geral as públicas investem mais em pesquisa, enquanto a maioria das particulares se concentra em ensino de graduação. Segundo ele, isso infla estimativas de gastos por aluno na universidade pública.”.(BBC)