Conselho Comunitário: Histórico
Característico do pensamento mercantilista, em que o bem-estar da sociedade era identificado com o bem-estar do Estado o monarquismo absolutista do século XVII apresentava as seguintes características: O Estado assumiu novas funções relativas a um controle e uma intervenção crescente sobre o econômico e o social. Precisou adequar-se institucional e organizacionalmente a essas novas funções, promovendo um importante centralização administrativa constituindo um arcabouço jurídico-legal considerável e formando uma burocracia estatal organizada e sofisticada a ponto de estar capacitada a defender os interesses do Estado, num contexto em que a sociedade devia servir à esfera estatal . O Estado aparecia como portador exclusivo da verdade técnica e do poder decisório e executivo. A participação não chegava a ser passiva; mas se caracterizava como alvo de um Estado intervencionista.
A idéia de participação comunitária apareceu no início deste século, representando um novo padrão de relação Estado-sociedade , para dar resposta a graves problemas que atingiam a sociedade. Caracterizou-se por se dirigir aos mais pobres; por ressaltar os valores da educação, do trabalho e do coletivismo como caminhos do progresso; por priorizar a descentralização administrativa e a organização comunitária, entendendo que o êxito do trabalho social dependia do grau de integração com as pessoas enquanto comunidade, no seu próprio meio. A comunidade é definida como social e culturalmente homogênea, como identidade própria e uma suposta predisposição à solidariedade e ao trabalho voluntário de auto-ajuda. Enfatiza-se a capacidade de a comunidade se unir, se organizar, se esforçar, enquanto solução em si mesma. A população deixa de ser alvo inerte de uma ação controladora e passa a ser chamada a cumprir um papel minimamente ativo e consciente.
Fenômeno emergente no cenário internacional desde a década de 60, com os chamados movimentos sociais urbanos, a concepção de participação popular está associada a um novo referencial teórico, em que a categoria comunidade é substituída pela categoria povo, aqui designando a parcela da população excluída do acesso a bens e serviços. Há uma aproximação com o marxismo ao se abordar a questão da segmentação social como elemento explicativo, que decorre da forma como está organizada a produção, sendo o Estado encarregado de garantir a reprodução permanente e ampliada desse processo. As políticas públicas se subordinam a essa lógica e atendem à necessidade de manter e reproduzir o sistema, sendo também vistas como geradoras de desigualdades. O Estado passa a ser um opositor contra o qual se dirige o processo político de participação. As melhorias sociais são obtidas através de conquistas, o acesso deve ser obtido através da pressão, do movimento.
Nos anos 70, a participação passa a ter o sentido explícito de luta e contestação contra as limitações governamentais à tentativa de conquista da educação pelas classes populares. O espaço de participação ultrapassa os limites do setor de educação, alcança o conjunto da sociedade e do Estado e ocorre uma radicalização da prática ao se articular a mobilização dentro das instituições de educação com as formas de luta, resistência e organização das classes populares: associações de bairro, clubes de mães, cooperativas de consumo, conselhos de educação etc.
A participação nas decisões é cada vez mais valorizada em detrimento da participação nas ações, como forma de garantir o redirecionamento das políticas e práticas para atendimento das necessidades do povo. A organização popular está voltada para o enfrentamento com o Estado e o sentido da participação é o de acumular forças para a batalha permanente pela mudança geral do modelo existente.
O Estado de direito moderno reconhece a necessidade de defender a sociedade contra os eventuais excessos no funcionamento da máquina estatal, através da divisão de funções entre os poderes e de mecanismos recíprocos de controle, em nome da sociedade.
A novidade nos anos 80 é justamente a idéia de que esse controle seja feito pela sociedade através da presença e da ação organizada de seus segmentos. O processo de democratização trouxe à cena novos atores e questões na esfera das relações Estado-sociedade. Do lado da sociedade, torna-se visível a presença de uma diversidade de atores. Do lado do Estado, vai-se firmando sua dimensão de espaço de representação e pactuação. O processo de participação deixa de ser restrito aos setores sociais excluídos pelo sistema e pretende dar conta das relações entre o Estado e o conjunto de indivíduos e grupos sociais, cuja a diversidade de interesses e projetos integra a cidadania, disputando com igual legitimidade espaço e atendimento pelo poder estatal.
Segundo Teixeira[5] a formação de conselhos como canal de participação da sociedade na constituição do poder político não é uma questão recente:
“os teóricos marxistas clássicos já os concebiam como órgãos embrionários de um governo revolucionário, cujos delegados recebiam um mandato imperativo e revogável, isto é, deveriam seguir estritamente as instruções dos representados e poderiam, a qualquer momento, ser suspensos de suas funções.”
Experiências efetivas desta forma de participação são encontradas, desde a Comuna de Paris, os sovietes na Rússia, os conselhos operários na Alemanha, Itália e mais tarde na Espanha, representaram tentativas de construção de um poder autogerido, base para a instituição de um novo Estado, articulando a esfera econômica à política, fundamentando-se na revogabilidade dos mandatos, assunção de funções administrativas e em forma de democracia direta.[6]
Nos países capitalistas constituíram-se como formas alternativas de poder e gérmens de novas estruturas políticas. A discussão se trava em torno da relação dos conselhos com os sindicatos e o partido e do seu papel de autogoverno. Vale a pena ressaltar que órgãos internacionais como o Banco Mundial e o PNUD[7], orientam os governos nacionais no sentido da criação de conselhos de gestão como forma de melhorar o planejamento das ações e aplicação dos recursos e combater a imprevidência de alguns governantes.
No Brasil é relativamente recente a prática dos chamados Conselhos de Gestão na administração pública, entendidos enquanto perspectiva de participação independente dos cidadãos no processo de planejamento e tomada de decisões junto ao Estado.
Nas décadas de 70/80, a questão dos conselhos se insere na agenda política de duas formas. De um lado, na forma de “conselhos comunitários” criados pelo poder público para negociar demandas dos movimentos populares, face à crescente mobilização das populações, principalmente as residentes nos bairros de periferia.
Já em 1979, em São Paulo, um decreto do prefeito criava um “conselho comunitário”, formado por associações de classe, entidades, movimentos religiosos e associações de bairros. N o governo Montoro, esse processo foi ampliado para o Estado todo, elegendo o discurso participativo e da descentralização como ideologia oficial e a“ação comunitária” como política governamental. Instituíram-se vários tipos de conselhos, desde o da“Condição Feminina”, “do negro”, “da juventude”, “Idosos”, “Deficientes Físicos”, de “Comunidades Locais” até Conselhos Municipais, para “promover o estudo e a solução dos seus problemas” e, em troca, “ampliar sua base de legitimidade”. Na realidade, constituíram-se em mecanismos de ritualização de demandas ou instrumentos de cooptação de lideranças.[8]
Também no Rio de Janeiro a partir de 1982, houve uma tentativa de formar conselhos em algumas secretarias de Estado, de natureza consultiva e efêmera, já que todas as decisões concentravam-se no gabinete do governador. Em 1996, a Prefeitura criou os Conselhos Governo/Comunidade por região administrativa, com representação de associações de moradores e outras entidades, sem caráter deliberativo, entendidos como fórum de negociação, porém de vida curta.[9]
Experiências como estas, suscitaram discussões teóricas e políticas nos partidos de esquerda, universidades e entre os próprios movimentos. Foram referências importantes para lutas desenvolvidas na Constituinte em torno de arranjos institucionais que permitissem um mínimo de participação da sociedade no controle, fiscalização e proposição de atos e decisões governamentais. Serviram de base também para proposições na Constituinte, como a do sistema Único de saúde, cuja a emenda popular fundamentou-se na 8º Conferência Nacional de Saúde, com a participação de 5 mil pessoas, apoiadas por 160 entidades da sociedade, e ainda para emendas sobre participação popular, instituindo alguns instrumentos e mecanismos para viabilizá-la.[10]
Com a eleição de 1988, em que algumas prefeituras passaram ao controle de partidos como o PT, a discussão se acirra, inclusive internamente, envolvendo questões como natureza dos conselhos, competência, composição, iniciativa de criação, relação com o Estado:
“A questão central dizia respeito a ser ou não o conselho um órgão embrionário de um novo poder, de uma forma de democracia direta, com autonomia em relação ao Estado; a posição ao final prevalecente o concebia como uma das formas de participação visando mudanças na gestão pública e na elaboração de políticas, tendo em vista sua democratização e transparência, portanto, como canal de relação entre Estado e sociedade, espaço de administração de conflitos.”[11]
Quanto ás competência e natureza dos conselhos, ou seja, ao seu caráter decisório ou consultivo, as posições não eram alinhadas à primeira questão, alguns descartando esta dicotomia, preferindo pensar o conselho como espaço de negociação, com decisões partilhadas.[12] Outro afirmavam o caráter consultivo como forma de manter a independência e autonomia dos movimentos em relação ao Estado, não se comprometendo com as decisões resultantes de uma correlação de forças, em geral desfavorável.
Alguns defendiam a natureza deliberativa como forma de constituição de um novo poder num processo de acumulação de forças, outros buscavam a democratização através da formulação de políticas públicas voltadas para os interesses populares.
Esse debate persiste, envolvendo outras questões que se relacionam com o problema da institucionalização de mecanismos que possam garantir a continuidade da participação popular, independente de que o partido esteja no poder. Se os administradores eleitos naquela época tiveram a cautela de não implementar nenhuma das posições em debate e procuraram estimular canais informais, com o decorrer do tempo viram que era necessário fixar regras, procedimentos, ainda que frutos do debate público e baseados nas experiências já desenvolvidas. Como ocorreu com o “orçamento participativo”.
Por outro lado, o processo político desenvolvido a partir de 1984, com a participação organizada de vários segmentos da sociedade, conduziu à instituição de uma série de mecanismos e canais de interlocução entre os quais os Conselhos setoriais, cuja generalização e implementação compulsória a partir do governo federal nos parece bastante problemática.
Na realidade, o processo envolvia mais que a formalização dos conselhos, implicando o reconhecimento oficial de espaços autônomos de interlocução da sociedade e de formulação de demandas; isso exigia apenas a publicação dos regimentos internos, elaborados e discutidos pelos movimentos e a sua aceitação pela prefeitura como canal de mediação com a população: “Em casos como o de Campinas, o que se pleiteava era a regulamentação do uso da terra, pois a Assembléia do Povo já se constituía como interlocutora legitimada, ainda que sem nenhuma institucionalização.”[13]
Ao lado dessas iniciativas, com a crise do Estado agrava-se a precariedade dos serviços públicos, principalmente na áreas de previdência e saúde. A ampliação das demandas e a crescente mobilização e organização popular levam setores do Estado a uma maior interação com a sociedade, buscando ouvir as reivindicações da população selecionando-as e enquadrando-as institucionalmente, ao mesmo tempo que também modificam, de certo modo, os métodos e concepções tecnocráticas.[14]
São assim incorporadas as representações dos prestadores de serviços, profissionais de saúde e usuários. Elas não têm poder deliberativo porém tematizam as questões de saúde numa perspectiva crítica em relação ao modelo assistencialista vigente, com propostas de reforma do sistema.
Esse processo na área de saúde desemboca na VIII Conferência de Saúde, que em 1986 reúne 5 mil representantes dos diversos segmentos sociais, além dos governamentais. Os delegados foram eleitos a partir de conferências estaduais, que discutiram as questões de saúde:
“…Para essa evolução foi fundamental a experiência, nos anos 80, dos Conselhos e Comissões Interinstitucionais (Conasp, Comissões das AIS, Conselhos de saúde propostos na VIII Conferência Nacional de Saúde), com representações mistas dos diversos segmentos da sociedade e do poder público. Em termos de prática em saúde, representou a defesa do fortalecimento do setor público, da unificação hierarquização, regionalização e descentralização do modelo assistencial, com estímulo à atenção ambulatorial e à participação da sociedade no processo de mudanças. Esses órgãos colegiados permitiram integrar os gestores públicos, regular sua relação com a iniciativa privada e a sociedade, controlar as transferências financeiras e estabelecer a co-gestão dos recursos, além da democratização do controle e avaliação dos serviços. “[15]
A inserção na Constituição de princípios e diretrizes constantes da emenda popular sobre o Sistema Único de Saúde consolidou um processo iniciado bem antes, fruto das pressões de movimentos populares e de articulações de entidades profissionais. E exigiu novas mobilizações para seu detalhamento e posterior implementação, enfrentando interesses de grupos privados, refratários às mudanças e ás diretrizes democratizantes.[16]
Processo semelhante, com resultados um pouco diferentes, deu-se com a área de Educação. Desde a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (1961), estavam previstos o Conselho Federal e os Estaduais, porém com atribuições mais burocráticas e composições elitistas, através de figuras de “notório saber”. A participação de unidades de ensino era concebida com um papel limitado e conservador, no sentido de colaborar com a manutenção dos prédios e funcionamento dos estabelecimentos. Na regulamentação dos dispositivos constitucionais, os movimentos sociais não obtiveram muito êxito, tal a força dos grupos de pressão privatistas.
Em relação às questões do meio ambiente, assistência social, direitos humanos, direitos da criança e do adolescente e moradia, as entidades que apresentaram propostas democratizantes se defrontam, ainda hoje, não só com a resistência das elites burocráticas, como também com os grupos de interesses contrários, com os quais se buscam discussões e negociações para fazer avançar uma regulação mais democráticas dessas políticas.
No campo da assistência social, a partir de um projeto de lei apresentado na Câmara com sugestões das diversas organizações da sociedade civil, foi possível discutir com o governo e realizar 11 seminários regionais para coletar sugestões. Em parte, elas foram acolhidas na lei afinal promulgada[17], após 5 anos de mobilizações, pressões, negociações.
Esses são exemplos de que se constrói no país uma nova forma de conceber a gestão governamental, não como uma mera formalização de procedimentos a cargo de doutos e técnicos, mais resultantes de um processo contraditório de interlocução entre atores diferenciados, numa pluralidade de espaços públicos. Nesses espaços, interesses e concepções são explicitados, negociações são realizadas em busca de um consenso, ainda que provisório e limitado, com a elaboração de parâmetros mínimos para orientar a ação dos diversos atores.
Jose Claudio Rocha Âmbito jurídico