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Acidente da Cavalo Marinho faz dois anos e vítimas lutam por justiça

Nascida e criada entre Vera Cruz e Itaparica, Adailma de Santana Gomes nadava muito bem, o que lhe permitiu salvar a própria vida e a de uma outra passageira quando a embarcação Cavalo Marinho I virou, na manhã de 24 de agosto de 2017. No entanto, os 26 anos à beira-mar não a prepararam para os pesadelos que lhe tomariam as noites dali por diante. Diagnosticada com estresse pós-traumático, a jovem cometeu suicídio em 19 de setembro do ano passado.

Adailma deixou uma filha que acaba de completar 5 anos e um viúvo, Luis Felipe Marques Gonçalves, 59 anos, que tem lutado para que a morte da esposa seja reconhecida como a 20ª causada pela tragédia da Cavalo Marinho. Dezenove pessoas morreram no mar, após o barco virar com 116 passageiros e quatro tripulantes a bordo.

Trauma

Pouco mais de um mês após a tragédia, Adailma buscou o Centro de Atenção Psicossocial (Caps) mais próximo, onde recebeu acompanhamento psicológico e psiquiátrico.

Luís conta que ela não se conformava com os efeitos dos medicamentos, que a faziam dormir quase o dia inteiro e geralmente ficava irritadiça nas horas que passava acordada.

Segundo o viúvo, ela tinha tentado suicídio três vezes. Nas duas primeiras vezes, o problema foi resolvido em casa, mas no terceiro episódio Adailma passou uma noite hospitalizada, o que estaria comprovado por laudo médico. Na noite de 18 de setembro de 2018, ela foi encontrada desmaiada em uma poça de vômito. De acordo com o atestado, o óbito aconteceu no dia seguinte, motivado por “causa a esclarecer, insuficiência respiratória, provável autointoxicação medicamentosa”.

Adailma havia processado a CL Transporte Marítimo, responsável pela Cavalo Marinho I, requerendo indenização por danos morais e materiais, mas conforme o advogado a única tentativa de conciliação terminou com a empresa alegando não ter tido acesso à acusação. O processo aberto após a morte dela ainda aguarda a primeira audiência de conciliação.

De acordo com Danilo Reis Julião, 29 anos, que perdeu a esposa, o filho e a sogra na tragédia, a empresa apresentou o mesmo argumento na audiência de conciliação. “O que eu quero é que seja feita a justiça, pois valor nenhum vai trazer minha família de volta, dinheiro nenhum vai me deixar feliz como eu era com a minha família”, afirma.

Morando em Itaparica e trabalhando como taxista, Danilo transporta diariamente turistas e outros passageiros para embarcar rumo a Salvador, mas desde a morte de Dulciana, Dulcelina e Darlan, não usa mais as lanchas. Ele recorda que, mesmo no ferry, a primeira travessia após o acidente foi um transtorno.

Crise

O trauma com mar é ainda mais profundo em Jucimeire Santana, 48, servidora pública que mora a menos de um quilômetro do terminal marítimo. Desde a tragédia, ela sequer consegue tomar banho de mar. Em tratamento por depressão e sofrendo crises de ansiedade, Meire, como é mais conhecida, não consegue conter a emoção quando fala da tragédia e de como a vida foi impactada.

“Só conseguia embarcar praticamente dopada”, confessa, falando sobre as vezes que precisou fazer a travessia. Outra medida indispensável era vestir o colete salva-vidas, mesmo que precisasse pedir a um tripulante que desamarrasse o equipamento. Mas na primeira semana de agosto, ela decidiu que não vai mais usar o serviço. “Tinha muito vento e a lancha quase subiu na ponte (o cais em Mar Grande)”, recorda, lembrando que teve uma crise nervosa a bordo.

Na época do acidente, Meire cursava direito em Salvador e fazia a travessia diariamente. Ela conta que trancou o semestre em curso e, no semestre seguinte, vendeu a motocicleta que usava como mototáxi para custear a permanência na capital. No entanto, o dinheiro acabou e ela teve de voltar para Mar Grande.

Sem condição de cruzar a baía de Todos-os-Santos diariamente, ela acabou trancando a faculdade. Afastada do trabalho por conta da depressão, ela aguarda a próxima perícia para ver como resolver o vínculo com a prefeitura. Meire acredita que a única maneira de retomar uma vida normal é sair de Mar Grande, de preferência para um lugar que não tenha mar.

TRAVESSIA NÃO CONTA COM ORIENTAÇÕES DE SEGURANÇA

Terça-feira passada, uma equipe de A TARDE fez a travessia Salvador-Mar Grande às 8h45 e, no sentido contrário, às 12h30. Na viagem, não houve orientação de segurança, que a assessoria de imprensa da Marinha afirma ser obrigatória. Coletes estavam no teto e informações de uso afixados em partes específicas. O cartaz informava onde estavam os coletes infantis no barco.

O motorista Rafael Rodrigues, 24, fazia a travessia com a filha e disse não saber onde pegar os coletes infantis. Ele usa o serviço pelo menos uma vez por semana e nunca recebeu orientações.

A Marinha informou realizar diariamente “ações de fiscalização do tráfego aquaviário na Baía de Todos-os-Santos e nos terminais de passageiros para coibir ações que ponham em risco a segurança da navegação”. Responsável pela concessão, em nota a Agerba esclarece que fiscaliza “o cumprimento de horários das embarcações, limpeza, conforto nos barcos e serviços de atendimento prestados ao usuário”. Procurada por A TARDE, a Vera Cruz não deu retorno até o fechamento da reportagem.

JUIZ OUVIRÁ TESTEMUNHAS EM SETEMBRO

No dia 5 de setembro, o processo criminal relativo às 19 mortes causadas pelo acidente com a embarcação Cavalo Marinho I terá mais uma etapa. Nessa data, o juiz criminal da Comarca do Tribunal de Justiça em Itaparica deve ouvir as testemunhas finais de defesa, de acordo com informações da assessoria de comunicação do Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA).

O processo em tramitação parte do inquérito policial remetido ao MP-BA, que denunciou, em 30 de agosto de 2018, o proprietário da empresa CL Transporte Marítimo, Lívio Garcia Galvão Júnior, e o comandante da Cavalo Marinho I, Osvaldo Coelho Barreto, pelas 19 mortes. O Ministério Público pediu a condenação de ambos por homicídio culposo e lesão corporal culposa.

Há cerca de um ano, a Defensoria Pública do Estado prestava assistência a 63 sobreviventes e parentes de vítimas, mas o órgão não enviou informações atualizadas sobre a atuação no caso até o fechamento da reportagem.

O proprietário da CL e o comandante da embarcação também são réus, juntamente com o engenheiro responsável técnico pela Cavalo Marinho I, no processo 32.241/2018 que tramita no Terminal Marítimo (RJ). Segundo informações da assessoria de imprensa da Marinha na Bahia, acaba de ser concluída a fase de alegações finais do processo citado.

Conforme informado pela assessoria da Marinha, as acusações de negligência e imprudência foram baseadas na constatação de que “a embarcação não cumpria com os critérios mínimos de estabilidade previstos para a área 1 da navegação interior” e que a fixação inadequada de pedras na área de máquinas causou o deslocamento delas, contribuindo para o desequilíbrio da embarcação.

A Marinha aponta ainda que “depois de perceber as condições climáticas adversas, o comandante deveria ter evitado o banco de areia e pedras e os impactos das ondas e ventos ou deveria ter retornado para o Terminal Marítimo de Mar Grande, de modo a aguardar melhores condições de mar e vento para a navegação segura”.

Procurada por A TARDE, por telefone e e-mail, para falar sobre os processos relativos ao acidente e as atuais condições da travessia, a CL Transporte Marítimo não deu retorno até o fechamento da reportagem. (ATrade)

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