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Jogando para a torcida

Na linguagem futebolística, “jogar para a torcida” é quando um jogador, tentando ser o centro das atenções, faz jogadas que pouco ajudam ao time como um todo, ao jogo coletivo, essência do futebol. Dizem os mais entendidos que a seleção brasileira campeã do mundo em 1970 foi a melhor de todas até hoje, justamente porque tinha “um jogo coletivo forte”. Na equipe, mesmo havendo uma grande estrela (Pelé), prevalecia um futebol articulado, baseado no esforço e no reconhecimento de todos. Diferentemente disso (algo já do meu tempo e que, portanto, acompanhei pessoalmente), vimos fracassar a nossa seleção verde canarinho já por duas vezes consecutivas, e de forma vexatória, porque, em vez de priorizar a coletividade no campo de jogo e o interesse de todos, tentou-se construir um auto-herói, alguém auto-suficiente que, sozinho, representaria a força tradicional da seleção brasileira. Não deu certo!!! Na copa do mundo de 2014, isso foi tão incômodo que alguns jogadores passaram a reclamar da atenção exacerbada dada pela imprensa nacional e pela CBF ao suposto protagonismo do “menino Ney”, em detrimento dos demais colegas de equipe.
Esse tipo de coisa, a meu ver abominável, também pode ser vista em outro campo de jogo: a Política. Política (com P maiúsculo) é a arte de construir consensos, de atender a interesses coletivos e de resolver problemas comuns, de forma dialógica e pacífica. No entanto, não é difícil identificarmos ações governamentais, em diferentes dimensões da federação brasileira, que tão somente visam a fortalecer o próprio governo, seus aliados diretos, grupos e corporações historicamente privilegiadas. Nesse contexto, a agenda governamental não tem por objetivo atender às necessidades reais da população, mas fortalecer o próprio governante, construir dele uma imagem positiva, mesmo que suas jogadas não tenham necessariamente o efeito prático e objetivo que deveriam ter. Tratam-se apenas de “jogadas para a torcida”. Se a torcida não for bem atenta (o que parece ser o nosso caso), corremos o risco de transformarmos determinados governantes em heróis, “mitos”, quando suas ações, embora bonitinhas aparentemente, não são sustentáveis a médio e longo prazo.
Aqui em Vera Cruz, o jogar para a torcida tem sido elevado à máxima potência nos últimos anos e, no nosso caso especificamente, tem dado os resultados esperados pelos “jogadores”. Infelizmente, nossa torcida não tem sido capaz de observar cuidadosamente o campo de jogo, entender as jogadas e meditar sobre seus resultados práticos para o futuro. Pergunto: apesar de tantas jogadas bonitinhas nos últimos anos, quantos gols marcamos em áreas prioritárias como educação, saúde, desenvolvimento urbano, sustentabilidade ambiental, socioeconômica, etc.? Como anda nosso sistema de transporte, apesar da nova “rodoviária”? E a juventude: quais opções de formação, inclusão social, emprego, renda, participação cidadã? E a moralidade pública: como são feitas as contratações, indicações, nomeações, etc.? E o hospital municipal que, “depois de tantos anos fechado e, agora, devolvido à população”, como funciona? Quantos procedimentos de média e alta complexidade? Que atendimento verdadeiramente hospitalar é prestado ali? E a educação???
Aqui, a situação é bem peculiar. No meio de uma pandemia que, só no Brasil, já matou mais de duzentas mil pessoas, “a educação parou”. Quando falo em educação, neste caso, não me refiro à escola apenas. Sabemos que, por causa da pandemia, as escolas não podem abrir, funcionar regularmente no sistema tradicional. Falo na educação de forma mais ampla e isso envolve uma dinâmica de processos que não poderia parar de forma alguma. A prova mais evidente de que “paramos” é que, ainda hoje, há mais de três meses do início do novo governo, sequer temos um secretário ou secretária de educação. Esse personagem seria fundamental para a coordenação de nossa política educacional, sobretudo no contexto atual. Sua ausência no momento representa descaso e irresponsabilidade com a coisa pública. De acordo com a legislação educacional brasileira, cabe aos municípios, através das Secretarias Municipais de Educação, coordenar a política educacional em âmbito local. Como fazer isso se não temos sequer uma liderança na pasta, que aglutine os diferentes segmentos que atuam na educação do município? Como têm sido orientados os processos administrativos da pasta e quem responderá por eles? Mais ainda, o que isso significa e a quem interessa? Nossa legislação diz que a Secretaria de Educação deve ter gestão plena dos recursos da educação, sobretudo aqueles oriundas de receitas constitucionalmente vinculadas e dos fundos públicos de financiamento da educação, como o FUNDEB. Quem tem feito essa gestão, se não há secretário (a)? Isso é grave!!!
No final do ano passado, recebemos a notícia de que um colega nosso, competente professor, coordenador pedagógico, pesquisador, estudioso da educação há muitos anos, querido entre nós, trabalhadores da educação, seria nosso secretário. Eu, particularmente, vibrei e aplaudi a “escolha”. No entanto, seu nome, segundo o que foi ventilado socialmente, não teria sido aprovado pelos pistolões da política partidária. Daí que, até o momento, estamos nesta situação. Além desse colega, sabemos que há bons quadros na secretaria de educação, profissionais competentes e dedicados, conhecedores de nossa realidade educacional, que poderiam assumir tal papel. O que vemos, contudo, é o interesse político partidário ser sobreposto ao interesse político educacional. Aqui, o interesse é apenas jogar para a torcida. Jogadores competentes e verdadeiramente comprometidos com a política educacional não interessam à política partidária. Ao contrário, podem ser para ela “uma grande pedra no caminho”.
Foi assim, jogando para a torcida, que o atual prefeito obteve mais de 80% dos votos válidos na última eleição. Muitas “obras”, muitas “ações”, muito márqueting político, mas poucos resultados práticos para o município. Sua última jogada foi exposta e bastante badalada nesta semana nas redes sociais. A notícia de que a Prefeitura entregará, a partir de hoje, tabletes para alunos da rede municipal de ensino fez vibrar a torcida que, emocionada, aplaudiu sua excelência, o prefeito. Pergunto, todavia: qual o objetivo disso? Como os alunos utilizarão o dispositivo, se até o momento não temos “educação”? Faltam diretrizes, profissionais, recursos, até energia elétrica (legalizada) numa certa escola do município.
Quem decidiu comprar tabletes para professores e alunos do município? Houve discussão com os conselhos, com os trabalhadores da educação, com os alunos e as comunidades escolares? Não. Essa ação foi delineada, programada a partir de uma necessidade realmente identificada na rede e, como tal, colocada a serviço da solução de um problema efetivo, democraticamente identificado pelo conjunto dos nossos jogadores da educação? Não! Mais uma vez, trata-se de uma jogada para a torcida, cujos resultados práticos pouco importam. Se haverá gol e se ele será bonito, útil e levará nosso time (município) ao título, pouco importa. O que importa mesmo é construir uma imagem tal como a do menino Ney, que brilha nas ondas das redes sociais, com muitos likes e glamoor, mas sem que seu “time” obtenha vitórias efetivas, que beneficiem a todos.
Devo dizer também, para finalizar, que esse comportamento não é exclusivo de um jogador, mas algo comum entre tantos no jogo da política partidária nacional. Caberá à torcida, se quiser mesmo um jogo real, diferenciar os jogadores e as jogadas, escolhendo sempre aqueles que melhor se identifiquem com os interesses coletivos e não individuais, partidários, imagéticos. Nesse sentido, precisamos apurar o olhar e os demais sentidos. Precisamos ler melhor nosso campo de jogo. Por fim, enquanto nossa torcida esperar que um único jogador seja capaz de garantir o sucesso da seleção, o título não virá. Por sua vez, enquanto nós, eleitores-cidadãos, aceitarmos que um governante, investido do poder que lhe conferimos pelo sufrágio universal, jogue para a torcida, sem cobrar dele a responsabilidade que um representante do povo deve ter com o interesse público, jamais mudaremos nossa triste realidade.

Vera Cruz, BA, 08/04/2021

Prof. Heder Amaro Velasques de Souza

(Redes Sócias)

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