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Sai 5ª, entra 6ª série: a fase ‘divisora de águas’ em que a educação brasileira degringola

“É muita coisa, professora, é muito conteúdo.” “Você está indo rápido demais, não estamos acompanhando o ritmo.”

Essas são algumas das frases que a professora Patricia Rosas, da rede pública de Campina Grande (PB), já escutou de alunos recém-entrados na 6ª série, o primeiro dos anos finais do ensino fundamental brasileiro.

“Para os alunos, a entrada na 6ª série é uma ruptura da rotina escolar”, explica Rosas.

A transição da 5ª para a 6ª série, quando as crianças costumam ter a partir de 11 anos, é considerada uma fase delicada: é a partir daí que conquistas recentes da educação pública brasileira começam a se perder, e índices educacionais do país sofrem uma piora considerável.

Por trás disso estão, segundo professores e especialistas consultados pela BBC News Brasil, grandes mudanças na rotina escolar das crianças, além de um acúmulo de problemas — e poucas políticas públicas para resolvê-los.

A primeira grande mudança é que as crianças deixam de ter um único professor ensinando todas as disciplinas — professor este que costuma ser o ponto de referência e o principal vínculo dos estudantes da 1ª à 5ª série.

Na 6ª série, cada disciplina passa a ter seu próprio docente, com tarefas e exigências próprias e uma demanda maior para que o aluno saiba gerenciar o próprio tempo.

“Começa uma rotatividade de atividades e professores que assusta os alunos”, prossegue Rosas, lembrando ainda que muitos estudantes precisam trocar de escola para cursar o fundamental 2. No caso de alunos da zona rural, isso significa longos deslocamentos diários para a nova escola na zona urbana.

“É uma mudança muito drástica e um choque de cultura para eles. Além disso, são pré-adolescentes vivendo suas próprias mudanças hormonais. (…) Muitos acabam ficando com a sensação de que o 6º ano significa começar tudo do zero.”

Índices ruins

Todas as etapas da educação brasileira ainda enfrentam sérios desafios, mas o aprendizado nos anos iniciais do ensino fundamental (1ª à 5ª) tem evoluído com mais rapidez do que nos anos finais (6ª à 9ª).

Segundo o exame oficial Prova Brasil, 42% dos alunos brasileiros concluíram o 5º ano com aprendizado adequado em matemática em 2017 (dados mais recentes), contra 32% em 2013.

Já nos anos finais, os ganhos são bem inferiores: só 14% dos alunos concluem o 9º ano com o aprendizado adequado na disciplina, uma evolução de apenas quatro pontos percentuais em relação a 2013.

A situação é um pouco melhor em leitura, mas longe do ideal: atualmente, 56% das crianças brasileiras terminam o 5º ano com aprendizado adequado em língua portuguesa. Mas, ao final do 9º ano, esse índice cai para 34%.

É nos anos finais que pioram, também, indicadores de repetência, evasão e distorção idade-série (alunos cursando séries inferiores do esperado para sua idade). Cerca de um quarto dos alunos tinha atraso escolar de dois anos ou mais no fundamental 2, segundo o Censo Escolar feito de 2018 do Inep, órgão ligado ao Ministério da Educação.

“Por causa disso, temos alunos de 18 e 19 anos ainda cursando o fundamental 2, na mesma sala de alunos de 14 anos”, conta Rosas.

Esse cenário reflete um acúmulo de problemas que vêm desde a fase da alfabetização, explica à BBC News Brasil Claudia Costin, diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais (CEIPE) da Fundação Getulio Vargas (FGV).

“55% dos alunos das escolas públicas saem analfabetos da terceira série”, que é quando deveria ser concluído o ciclo de alfabetização, diz Costin.

“Na quarta e quinta séries, isso ainda é compensado porque temos professores [com papel de] alfabetizadores. Mas isso se perde na sexta série.”

Além disso, Costin acha que a 6ª série ainda é cedo para os alunos já conviverem com tantos professores diferentes. “São crianças muito jovens, de 11 anos, para tantos professores especialistas. Nos países europeus, isso costuma acontecer mais tarde, quando as crianças têm a partir de 13 anos.”

Costin afirma ainda que, enquanto o Brasil focou seus esforços educacionais na alfabetização e na melhoria do ensino médio, os anos finais do fundamental acabaram “esquecidos” pelas políticas públicas.

“Temos feito muito pouco, particularmente em formação de professores para essa etapa”, diz Costin.

‘Isso vale nota?’

Ao mesmo tempo, diversos professores e pesquisadores pelo país têm se debruçado sobre as dificuldades do ensino fundamental e buscado formas de resolvê-las dentro de suas redes.

Cansada de ouvir dos alunos a pergunta de “isso vale nota?” para cada texto que ela pedia que fosse escrito, a professora Patricia Rosas, da rede estadual da Paraíba, achou que era hora de incentivar suas turmas de fundamental 2 a “escreverem coisas para alguém ler, alguém além de mim”.

E, de quebra, ela pensava em formas de evitar aquela “ruptura” que tanto observava na 6ª série.

“Queria um projeto que fosse para o letramento dos alunos, e não para dar nota. Queria dar significado ao texto deles, para que fossem lidos por um leitor real”, conta.

Ela também ansiava por dar continuidade ao trabalho de interpretação de texto que havia ficado mais concentrado na etapa do fundamental 1.

“Notava muita dificuldade das crianças em entender o que elas liam — localizar informações no texto e compreender pontos de vista. E precisávamos sedimentar essas habilidades.”

Rosas criou o Desengaveta o Meu Texto, um projeto de incentivo à escrita e à compreensão de textos que hoje é aplicado por ela em cinco escolas públicas da periferia de Campina Grande, com planos para se estender para mais cinco.

Os alunos do 6º ao 9º ano passaram a frequentar encontros semanais de leitura e debate sobre livros. Depois, participam de oficinas sobre variados estilos de texto — crônicas, poemas, contos, artigos de opinião e até cartas de reclamação.

Na etapa final, os estudantes são convidados a escrever um texto próprio para ser publicado na revista anual da escola, lançada com uma grande festa e depois distribuída para pais e alunos.

Na semana em que conversou com a BBC News Brasil, Rosas estava dando oficinas sobre biografias e textos de memória.

“Os alunos deixaram de escrever para ganhar nota e passaram a escrever para publicar. Isso mudou completamente [a forma como escrevem], desde o cuidado com o texto até o interesse por ele”, conta Rosas.

“As 500 cópias impressas que fizemos da revista passaram a ser insuficientes, e criamos um projeto digital. No ano passado, tivemos nossa terceira edição do projeto — e o lançamento que antes era feito no pátio da escola ficou tão grande que passou para o ginásio.” A quarta edição da revista vai ser lançada em dezembro.

De quebra, diz Rosas, o projeto transformou bibliotecas antes esquecidas em espaços vivos dentro da escola. “Algumas bibliotecas eram um mero depósito de livros, não frequentado pelos alunos. Uma das bibliotecas tinha apenas 3 livros, e conseguimos reformular todo o espaço e pedir centenas de livros emprestados.”

A iniciativa de Rosas foi escolhida, junto com outras 13, para um plano de fomento do Itaú Social e da Fundação Carlos Chagas, que estão financiando pesquisas sobre estratégias que visem a melhorar a educação pública nos anos finais do ensino fundamental.

A expectativa, diz Claudia Sintoni, coordenadora de Mobilização do Itaú Social, é que as pesquisas desenvolvidas em cada um dos 14 projetos gerem ideias que possam ser replicadas em escolas públicas do país inteiro nessa etapa de ensino, produzindo um impacto de maior escala na qualidade.

Outro objetivo é aproximar a universidade da realidade escolar, com melhorias na formação de docentes. Por isso, os projetos são desenvolvidos sob a coordenação de professores pesquisadores, com mestrado ou doutorado.

Desenvolver autonomia

No Paraná, a professora Cleoci Seledes fez um diagnóstico parecido ao de Patricia Rosas na Paraíba sobre a transição de alunos entre os anos iniciais e finais do fundamental.

“No início do ano letivo [da 6ª série], eles vivem muita angústia, insegurança e expectativas pela mudança”, conta a professora da rede estadual.

“Eles eram os alunos mais velhos [quando estavam no quinto ano] e passam a ser os mais novos [em comparação com alunos do 9º ano]. Mas com todas essas angústias vêm também o encantamento e a vontade de querer participar desse novo contexto da escola.”

Nos últimos anos, Seledes passou a se dedicar a estudar — e a minimizar — essa transição na pequena cidade de Cruz Machado (PR), com cerca de 20 mil habitantes.

“Começamos nossas ações ainda no 5º ano, quando vamos às escolas de fundamental 1 para nos apresentarmos [como futuros professores das crianças], criarmos vínculos com os alunos e tirarmos as dúvidas deles sobre a mudança de escola”, conta.

“Existe também uma conversa entre as equipes pedagógicas das duas escolas, para garantir a continuidade dos processos e para o aluno não sentir rupturas.” Esses alunos também são convidados a conhecer antes sua futura nova escola, em semanas culturais que servem também para a integração.

E, no primeiro dia de aula, pais e alunos novos são recebidos em festa. “É uma oportunidade de ouvi-los, conhecer suas expectativas e passar segurança às famílias”, conclui Seledes. O objetivo final, diz ela, é dar segurança para os alunos desenvolverem mais autonomia.

Projetos de escrita

E não é só no Brasil que isso é um desafio. Nos EUA, a ida à chamada “middle school”, equivalente ao fundamental 2, também é considerada traumática.

“A transição física entre a ‘elementary’ e a ‘middle school’ [respectivamente, fundamental 1 e 2] pode exacerbar o estresse e a adversidade vivida durante esse período crítico da vida” do pré-adolescente, aponta um estudo publicado recentemente por pesquisadores das universidades de Wisconsin-Madison, Stanford e da Califórnia-Irvine.

“Estudantes do fundamental 2 muitas vezes têm dificuldade em encontrar apoio social e emocional, e muitos acabam perdendo o senso de pertencimento na escola, desviando de uma trajetória acadêmica e profissional [que poderia ser] promissora.”

O estudo propôs uma intervenção simples para facilitar essa transição: alunos do 6º ano são convidados a escrever pequenas redações, respondendo a perguntas como “você acha que estudantes da 6ª série no ano passado se preocupavam muito com as provas? Agora que estão na 7ª série, acha que eles continuam se preocupando tanto? Você acha que no ano passado eles se preocupavam em se integrar na escola?”

Os mesmos alunos também liam pequenos depoimentos de alunos agora na 7ª série, contando sobre as dificuldades de adaptação que sentiram quando ainda estavam na série anterior e como as superaram.

Essa reflexão, embora simples, “ensinou os alunos que a adversidade na ‘middle school’ é comum, de curta duração e causada por fatores externos e temporários, e não por uma inadequação pessoal”, diz o estudo. “Como resultado, os alunos melhoraram seu bem-estar social e psicológico, faltaram menos à escola e tiveram menos problemas disciplinares.”

Casos de indisciplina na 6ª série caíram 34% após o exercício, diz o estudo.

Geoffrey D. Borman, um dos autores do estudo, opina que a estratégia pode servir para amenizar as angústias de alunos de qualquer lugar, inclusive no Brasil. Seu projeto, que inicialmente começou no Estado americano do Wisconsin, agora está sendo testado no Arizona, na Califórnia, no Texas e em Maine.

A conclusão de Borman e seus colegas é de que “mudar as perspectivas dos estudantes e melhorar seu engajamento com a escola contribui para sua performance acadêmica”.

De volta ao Brasil, Claudia Costin, do CEIPE-FGV, afirma que o país precisa dar atenção ao fundamental 2 para evitar que mais defasagens de ensino continuem sendo passadas de uma fase para outra, se estendendo até o ensino médio.

“86% dos alunos que vão ao ensino médio têm problemas com o aprendizado de matemática, por exemplo. É um acúmulo de um monte de deficiências das etapas anteriores”, diz ela.

(BBC)

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